SÓ QUANDO PARTILHAMOS AS DIFICULDADES ELAS SE RECONFIGURAM EM HORIZONTES
U
ma das histórias portuguesas deste ano é aquela protagonizada pelos irmãos Ferreira Pinto. O Miguel, que gosta de se apresentar simplesmente como alguém que pratica desporto, e o Pedro, que tem paralisia cerebral, decidiram fazer caminho e história enfrentando uma das provas mais exigentes de longa distância, o Ironman Triathlon: cerca de 3,8 km em natação, 180 km no ciclismo e os últimos 42 km na corrida. A história aconteceu no início do verão em Hamburgo, mas começou certamente há mais tempo: começou na coragem de uma família que interpreta a sua missão como serviço indiscutível ao amor; começou no potenciar dessa amizade que, desde a infância, pode ligar para sempre os irmãos; teve início na resiliente sabedoria de quem quotidianamente transforma os limites aprendendo a escutá-los mais fundo e a partilhá-los. É verdade: só quando partilhamos as dificuldades elas se reconfiguram em horizontes. Só desse modo, o que primeiro se considera um inultrapassável motivo de bloqueio se converte em possibilidade e estrada.
A dupla Miguel e Pedro transmite a quem a segue uma força incrível, mas sem truques espetaculares, sem maquilhagem nem pretensões, mostrando como a vulnerabilidade nua e a persistência se abraçam. Claro que os dois irmãos são heróis, mas sem outros poderes extraordinários que a genuína doação de si mesmos, lutando pelo bem dos outros, protegendo os seus sonhos, sorrindo por isso. No canal de YouTube onde foram relatando os detalhes da sua aventura (“Iron Brothers”), resumem assim aquilo que os moveu: “Estamos muito felizes. Conseguimos levar a nossa mensagem mais uma vez até ao fim. O Pedro fez isto pelo APCL (Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa). Eu fiz isto pelo Pedro. E juntos vamos continuar a lutar pela inclusão de pessoas com deficiência no desporto e na sociedade.” É impossível não notar que o segredo deles é aquele “por”. O Pedro que meteu no coração que pode ajudar a comprar a carrinha de que a APCL precisa; o Miguel que se põe ao lado do irmão para confirmá-lo no seu desejo. Por isso, juntos são maiores do que eles próprios. Não vivem apenas uma história de superação numa duríssima prova de resistência física: protagonizam juntos uma luta. Uma luta para que construamos todos uma sociedade mais colaborativa, inclusiva e humana.
Tornou-me estes dias ao pensamento a história dos Ferreiras Pinto ao conversar com Luca Pancalli, presidente do comité paraolímpico italiano. Pancalli teve, desde a juventude, uma vida dedicada ao desporto, nomeadamente no pentatlo moderno, vencendo diversos campeonatos. Em 1981, o seu percurso altera-se radicalmente: em consequência de um grave acidente desportivo fica tetraplégico. Providencial será então o encontro com um treinador, que lhe diz: “Amas o desporto, és um atleta e não continuas? O que tens a fazer agora é recomeçar.” E assim acontece. Luca Pancalli tornar-se-á um histórico nadador paraolímpico, estabelecendo vários recordes mundiais da modalidade. A mim, explicou-me deste modo a sua visão: “Em vez de nos fixarmos no que não temos ou no que perdemos, importa valorizar o que está ao nosso alcance.”
Para lá do estrito campo desportivo, os irmãos portugueses são também mestres na arte da fraternidade. Uma das imagens icónicas da competição de Hamburgo é a de Miguel transportando, no final da prova de natação, Pedro nos seus braços. Aquela imagem, porém, é circular. Ao ouvirmos Miguel Ferreira Pinto contar o que viveram quase se diria que todo o tempo era o Pedro quem o transportava a ele. Quem nos transporta a nós.
José Tolentino Mendonça. Que coisa são as nuvens. Expresso Semanário#2606, 7 de outubro de 2022
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