AO LONGO DA NOSSA VIDA, CHEGAMOS AO VERBO “RECOMEÇAR” EM ESTADOS E POR CAMINHOS MUITO DIFERENTES. TODOS, CONTUDO, TÊM ALGUMA MENSAGEM QUE PRECISAMOS DE OUVIR. TÊM ALGUMA COISA A ENSINAR-NOS
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esmo quando parece mais uma consequência do automatismo social do que propriamente uma decisão de vida, setembro obriga-nos a um confronto com o verbo “recomeçar”. É um verbo exigente, com uma espessura que não se deslinda de imediato, mas também rico em possibilidades, se o soubermos abraçar. O verão foi tudo isso: itinerância, saída, interrupção, intervalo, intersecção, distanciamento, pausa, espaço exterior e interior diversos. Setembro, por sua vez, conjuga regressos. Regressamos aos acampamentos de sempre, aos ritmos normalizados, à urgência das agendas. Regressamos ao tráfego e ao bulício das cidades, à vida uns dos outros e à forma habitual que tem a nossa. E regressamos tanto tonificados com aquilo que o verão nos permitiu, capazes de investir agora entusiasmo, capazes de disseminar uma operativa esperança, como nos sentimos arrastados a contragosto, sem a energia vital que desejaríamos, como se em vez de regressos nos sentíssemos a provar antes uma regressão. A verdade é que, ao longo da nossa vida, chegamos ao verbo “recomeçar” em estados e por caminhos muito diferentes. Todos, contudo, têm alguma mensagem que precisamos de ouvir. Têm alguma coisa a ensinar-nos.
É importante recordarmos a nós próprios que as modalidades do recomeço não são padronizadas e que, inclusive, é bom que seja assim. No fundo, interessa menos fazer depender a qualidade dos nossos recomeços do seu grau de facilidade. Recomeços difíceis não querem necessariamente dizer recomeços impossíveis ou, de qualquer modo, desqualificados. Há um dom naquelas estações em que a vida se resolve transparente, se movimenta em harmonia e tudo habilmente coincide. Mas não mergulharíamos apaixonados a tocar a substância da vida se não colhêssemos também aquilo que, por exemplo, as demoras, as fadigas, as múltiplas faces da vulnerabilidade ou as próprias feridas revelam. Uma das coisas mais preciosas da nossa trajetória espiritual é a certeza de que vamos sempre a tempo de recomeçar. Cada ciclo, cada estação, cada instante coloca-nos perante o dever de o testemunhar. Felizes aqueles que arriscam a audácia de viver assim, mesmo quando o cálculo das probabilidades se mostra adverso. São esses que, numa hora ou noutra, desmentem os fatalismos e se tornam os parteiros de um milagre. O milagre que faz equivaler o verbo “recomeçar” a uma espécie de nascer.
Tive a sorte de ser amigo do poeta Tonino Guerra e lembro-me de uma frase que ele repetia, assumindo-a como seu mote de vida: “Enamorar-se ainda uma vez.” Li depois, em qualquer lado, que essa teria sido também uma das últimas coisas ditas por Federico Fellini. Mas para Tonino o “enamorar-se ainda uma vez” funcionava, em continuação, como uma esquadria para medir e iluminar as angulações do quotidiano. Tratava-se evidentemente de uma escolha. Ele poderia viver dobrado sobre si mesmo, de costas voltadas para a vida, com a fanfarronice cínica ou o derrotismo dos que se apressam a pôr pontos finais. Escolheu, porém, sentar-se à soleira, disponível para a surpresa e o espanto, desejoso dessa porção de desconhecido que a vida reserva e que ele celebrava, enamorando-se pelos assuntos e lugares mais diversos ainda uma vez.
Quando numa recente entrevista, Maria João Avillez pede ao Papa Francisco uma luz para tempos difíceis, ele deixa este desafio: “Olhem para a janela. E perguntem-se: ‘A minha vida tem uma janela aberta?’ Se não tiverem, abram-na o quanto antes. Não tenham vistas curtas. Saibam que estamos a caminhar para o futuro, que há um caminho. Olhem para o caminho.”
José Tolentino Mendonça. Que coisa são as nuvens, Expresso#2603, 16 de setembro de 2022
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