A MEMÓRIA DOS VELHOS TORNOU-SE OBSOLETA. OS NOVOS DELEGAM-NA NA TECNOLOGIA. UM DIA, DESCOBRE-SE QUE ELA É O “EU”
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a minha primeira redação, havia um mítico editor de cultura de cabelos grisalhos esvoaçando ao sabor da ira que nos seus momentos mais alucinados me espantava com a sua sabedoria, esbugalhava os olhos e dizia: “O diabo não é diabo porque se chama diabo; o diabo é diabo porque é velho.” Na altura, tinha dificuldade em compreender a profundidade da frase. Há algo que pessoas com 30 anos não conseguem conceber: os jornalistas mais velhos eram o nosso Google. Dependíamos deles e da sua boa vontade para com a nossa ignorância disfarçada de “está aqui na ponta da língua”. Eram a memória e a cultura que não tínhamos, e que polvilhavam por generosidade os nossos artigos. Por isso, venerávamos as excentricidades dos seniores: só eles nos podiam salvar da nossa inexperiência e burrice. Foi o Google que tornou a memória dos mais experientes desnecessária. O Google tornou os seniores redundantes. Qualquer um que faça enter tem acesso aos detalhes mais ridículos da memória do mundo. Às vezes, parece injusto. Era tão difícil encontrar uma data, confirmar um facto. Não havia livro — talvez o centro de documentação —, mas um velho culto safava-nos naquela data, naquele nome. Afinal, era o diabo. E tenho a honra de ter sido amigo de muitos desses belzebus: o Torcato, o David, o César, o Rogério, o Roby: o equivalente a 2/3 do saber da Biblioteca Nacional — e todos já a jogar “Trivial” no inferno dos jornalistas.
A tecnologia é uma das explicações para o facto de as sociedades de culto da juventude terem desprezo pelos velhos. Durante milénios, o quotidiano pouco mudava em 70 anos, e ainda por cima os velhos eram escassos. A informação que detinham era valiosa e os mais novos — estagiários da vida — ansiavam pelo saber que os mais velhos detinham. E a experiência e a memória dos velhos eram cruciais. Por isso eram respeitados. rapidez das alterações tecnológicas da atualidade tornou os velhos obsoletos. Já não são sábios, são chatos. O que têm para contar estará em qualquer pesquisa; e esse saber não tem utilidade prática para o quotidiano. A complexidade da evolução da tecnologia “é intuitiva”, mas só para quem foi criado dentro dela. O que faz com que os velhos não tenham essa “intuição digital” e sejam infantilizados, deslocados do mundo. Em menos de meio século, e rompendo com a história da Humanidade, os velhos passaram de detentores da erudição para incapazes de se mover no mundo sem ajuda para abrir uma porta. Esta mudança é grave e trágica. Há um momento em que o cidadão começa a esboroar a sua identidade e é quando começa a perder a capacidade de se deslocar entre a tecnologia no mundo e a ser tratado com complacência.
Cada vez me preocupo mais com a minha memória nas coisas do dia a dia. Esqueço-me de tudo. Leio um artigo no “The Wall Street Journal” e fico mais tranquilizado. Neuropsiquiatras e sumidades neste campo garantem que este fenómeno do esquecimento global é algo que já vinha a acontecer e que se está a agudizar em toda a sociedade contemporânea. Estamos numa sobrecarga de stresse — da pandemia para a guerra, para a inflação, para o apocalipse, para esta dorzinha que não me larga, etc. E este “stresse cumulativo ligado à sobrevivência” tem um “consumo cognitivo” muito maior do que imaginamos. Como sou um esquecido de entre milhões, a tecnologia providencia-me soluções.
A Apple criou o AirTag, um aparelhito em forma de moeda que se coloca num porta-chaves ou numa carteira e serve para sabermos sempre onde estão os nosso pertences, desde que tenhamos o iPhone connosco. Até vendem à meia dúzia porque tem mais saída. Tenho aquilo em todo o lado: do carro à mochila. Há meses, estes coisitos fizeram escandaleira porque foram acusados de ser o ideal para stalkers: basta colocar o aparelho na mala ou no carro de alguém para se saber por onde essa pessoa anda. A bateria dura meses. Há histórias abjetas na imprensa internacional. A Apple diz que resolveu, mas é treta, porque os Androids não são avisados de que há um tag a espiar. E neste verão fizeram furor, porque no caos dos aeroportos muitos o colocaram nas malas de porão para descobrirem que a sua bagagem tinha ido para o outro lado do planeta. Os AirTag ajudaram-me? Não sei. Deleguei mais uma função da minha memória do quotidiano a uma entidade externa, fiz outsourcing de mais uma tarefa que devia ser intuitiva. As chaves? A carteira onde está? Olho para o ecrã do telefone: “Ah, na sala”; “Ah, ficaram outra vez no ginásio”. O absorver dessa tecnologia retira-me mais aptidões, da mesma maneira que deixei de saber caminhos ou ruas ao delegar todos os percursos no GPS, e nem vejo por onde passo. De cabeça enfiada no smartphone, nem olhamos para as caras, agora que nem estão cobertas de máscaras. Que ganhos de memória tenho por absorver essa contemporaneidade? Tenho mais “memória liberta” na cabeça? Tenho dúvidas. Acho que fico no limbo entre o esquecido e o viciado em não me lembrar das coisas. O que é uma preguiça terrível. Quem já teve a infinita tristeza de acompanhar uma pessoa com uma doença de memória descobre que essa é a sua identidade. A memória é o “Eu”. E quando a memória se vai desintegrando, vai ficando um mero invólucro, que é o corpo. Delegar o “Eu” em clouds, redes sociais, alertas e tags não impedirá a possibilidade de o cérebro um dia se esquecer de quem é aquele que está no espelho. O mais terrível dos momentos. Para os outros.
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