«Já nos Estados Unidos a contaminação da cidade pelo cinema e vice-versa não podia ter um aspeto mais prático, positivo e efetivo. O cinema entrou na cidade e a cidade entra no cinema e os dois emprestam-se um ao outro, ampliando e reinventando o território de ambos. Se a cidade do século XIX constituía um proto-ecrã, o ecrã constitui agora uma proto-cidade, a proto-cidade onde muitos querem viver» (Sol 2018, 20)
Na
tese “A Imagem da cidade e o seu espaço-representado no videoclip da
década de oitenta. Interferências norte-americanas na cultura
arquitetónica contemporânea dita ocidental.” (Universidade de Lisboa,
Faculdade de Arquitetura, 2018), Luísa Sol escreve que há toda uma nova
atmosfera urbana, advinda das alterações impostas no final do séc. XIX, e
que antecipou todo o ecrã contemporâneo - através da transformação da
noção de espaço público e da emergência de uma nova consciência do
individual (Sol 2018, 8). Essa nova consciência surgiu com o advento do
capitalismo industrial que destruiu lentamente o domínio público, ao
ampliar as expectativas e os interesses privados. O eclodir dos grandes
armazéns e o seu sucesso fizeram da vida pública um lugar mais intenso e
menos sociável, sublinhando sobretudo o papel da secularização. A
secularização leva o ser humano a mistificar a sua própria condição – e a
não ter tempo para olhar para qualquer outra coisa que não seja a sua
eterna face num reflexo. Sol explica que Baudelaire em O Pintor da vida moderna
afirmou que o indivíduo moderno deseja assemelhar-se somente àquilo que
pretende ser, sem se deixar tocar pelo incontrolável e pelo
incompreensível. E vive, por isso, em grande conflito com o facto de ser
outro. O seu reflexo nunca corresponde ao sonhado. O resultado é o
culto da personalidade, através do fascínio das roupas e da moda.
Haussmann, contribuiu em Paris, para a produção desta sociedade que
agrava a visão que cada um tem de si próprio - os grandes boulevards não
escondem nada, o importante é aquilo que as pessoas têm para mostrar.
A
metrópole da era industrial e o cinema surgiram num contexto muito
próximo: «A cidade moderna, do comércio, dos boulevards, das vitrines e
das arcadas sintetiza um modelo expositivo que determinaria a
importância da imagem, estática ou em movimento, da visibilidade do
indivíduo e da mercadoria, da sua circulação e transações.» (Sol 2018,
12)
A
cidade e também a arquitetura, para Sol, funciona assim como o ecrã da
modernidade e, gera, a necessidade do cinema. A cidade moderna trouxe a
constante vontade das pessoas verem e serem vistas. A nova velocidade,
as multidões de olhos e as largas avenidas esboçaram o ato de filmar e a
permanente exposição dos percursos no espaço. Por isso, a arquitetura
da cidade é a superfície ideal para se projetar tudo aquilo que as
pessoas têm para exibir.
Luísa
Sol revela ainda que os situacionistas já avisavam que a sociedade
moderna estava contaminada e dominada por imagens. A imagem do mundo
torna-se assim mais importante que o próprio mundo. Essas imagens são
uma produtificação da vida quotidiana. E vai ser cada vez mais difícil
separar a realidade da ficção. (Sol 2018, 20)
Ana Ruepp
Fonte: A FORÇA DO ATO CRIADOR. (2022). Retrieved 14 September 2022, from https://e-cultura.blogs.sapo.pt/a-forca-do-ato-criador-1345027
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