Uma nova gramática escolar em ação - Ensaio compreensivo das possibilidades
José Matias Alves e Ilídia Cabral
(CEDH - Centro de Estudos em Desenvolvimento Humano, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Educação e Psicologia)
Download |
Nenhuma regra geral, nenhum princípio universal virão já guiar a ação de mudança. Esta é uma ação política, no pleno sentido do termo, que não releva de uma lógica de otimização nem mesmo de maximização. Enquanto ação política, vai buscar a sua racionalidade e a sua legitimidade só aos atores que a têm e que a inscrevem num contexto, isto é, a um sistema de atores empíricos com as suas características, as suas estruturas de poder, as suas capacidades e as suas regras do jogo. Como. toda a ação política, ela pode certamente alimentar-se de princípios e de valores de alcance geral: mas não são unicamente esses valores que a justificam e a legitimam, é a sua capacidade de transformar efetivamente no sentido desejado a estruturação do sistema de atores em questão, ou seja, são os seus resultados. (Friedberg, 1995)
Na última semana de março de 2017, um alargado grupo de professores de escolas portuguesas participou no II Simposio Internacional Barcelona | Educación | Cambio, dedicado à inovação e mudança educativa. Do programa constava uma visita de estudo a 9 escolas da Catalunha (situadas na cidade de Barcelona e arredores) e que tinham alguma inovação a mostrar. Observe-se que a maioria destas escolas era de afiliação jesuíta, mas havia também escolas públicas e escolas privadas laicas. Estas visitas ocuparam três manhãs do Simpósio.
Aproveitando a presença de colegas portugueses, foi-lhes lançado o desafio de fazerem uma narrativa do que tinham observado, juntando imagens recolhidas e seguindo um roteiro flexível. Esta publicação é fruto da generosidade de nove professores que aceitaram ser autores das narrativas de cada uma das nove escolas visitadas.
Nesta nota introdutória, seja-nos permitido sistematizar as dimensões morfológicas, sintáticas e semânticas que viabilizaram o funcionamento de uma gramática escolar renovada.
A evidência primeira (a tese) que importa destacar é que é possível uma outra forma de escolarizar as crianças e os adolescentes. É possível outra forma de fazer aprender os alunos. É possível outra forma de organizar e desenvolver o currículo, outras formas de organizar o trabalho pedagógico de professores e alunos, outra forma de gerir espaços e tempos, fora da velha ordem industrial. Estas possibilidades (que são tendencialmente comuns às nove escolas, não obstante a existência de algumas diferenças) estão ancoradas num conjunto de fatores que passamos a enunciar (seguindo alguns dos ensinamentos de Hopkins e West, 1994):
i) As pessoas. As pessoas estão no centro do processo de escolarização. Os dirigentes sabem que a escola não melhorará se os professores não evoluírem individual e coletivamente. Ainda que os professores realizem individualmente grande parte do seu trabalho, se o estabelecimento de ensino, no seu conjunto, pretende melhorar, devem existir muitas oportunidades de encontro, de debate, de partilha para que os docentes aprendam juntos e assim se desenvolvam pessoal e profissionalmente. Isto foi particularmente evidente na generalidade dos casos.
No caso das escolas jesuítas são conhecidos os famosos 5 C que fundam, orientam e iluminam a ação:
Educar pessoas
Competentes
Conscientes
Compassivas
Comprometidas
Criativas
A ação profissional dos professores é tendencialmente orientada por este forte sentido teleológico. Os professores existem para estarem ao serviço das pessoas dos alunos, ao serviço das aprendizagens pessoais e sociais de natureza cognitiva, afetiva, social, emocional. Respira-se o axioma de que todos podem aprender. E toda 7 a organização pedagógica se funda e fundamenta para tornar verdade este princípio.
Este sentido de comunidade humana de aprendizagem é uma marca nítida das organizações visitadas.
ii) Currículo. Sim, as pessoas. Mas pessoas que aprendem, que fazem do conhecimento a pedra angular do futuro. Sabe-se que sem conhecimento não há liberdade, não há inclusão, não uma ordem democrática e participativa. Por isso, tudo tende a estar organizado para que os conhecimentos sejam apropriados, produzidos, pesquisados, partilhados. Mas estes conhecimentos não se constituem como um currículo único pronto-a-vestir, padronizado e estandardizado. As escolas reconstroem o currículo prescrito em função dos alunos concretos. E, nas realidades observadas, é uma invariante pedagógica o recurso sistemático a um desenvolvimento curricular baseado em projetos de natureza interdisciplinar e transdisciplinar. Há, neste domínio, diversas possibilidades: há quem na NEI dedique 60% do tempo semanal a atividades de projeto (restando 40% para trabalho ordenado segundo a lógica disciplinar); há quem dedique 60% do tempo semanal a práticas de base disciplinar (podendo embora aí também aí existir trabalho de projeto) e 20% a projetos de âmbito disciplinar (por áreas disciplinares contíguas) e 20% a projetos transdisciplinares que reúnem durante 15 dias 6 ou 7 professores que trabalham com os alunos num trabalho pedagógico de produção (todos os projetos geram um produto específico, instituindo-se, assim, a passagem de uma pedagogia do consumo para uma pedagogia da produção e da transformação).
Neste quadro de desenvolvimento curricular tende a não haver manuais. Os recursos são produzidos pelos professores, havendo o recurso sistemático à internet, ao trabalho de pesquisa, aferição e partilha.
iii) Espaços. Embora haja alguma diversidade nesta variável, os espaços tendem a ser amplos (no caso dos Jesuítas é um padrão), permitindo alguns deles reunir entre 50 a 60 alunos cujo trabalho de projeto é supervisionado e orientado por três professores. Contíguo a este grande espaço há dois pequenos espaços nos topos que permitem um trabalho mais resguardado em pequenos grupos.
A amplitude dos espaços obriga a uma interação entre os professores (e a uma planificação conjunta), obriga a uma descentração face à pedagogia do magíster dixit (aqui impossível), força a agrupar os alunos em pequenos grupos de 3 a 4 alunos que têm de estar numa atitude e numa disposição de projeto e de produção. Em muitas salas, as paredes (e as portas) são de vidro o que aumenta a transparência, a luminosidade e a observação do que se está a fazer. E, neste cenário espacial, os professores são mediadores, catalisadores, agentes de monitorização, feedback formativo, gestores de aprendizagens.
iv) Tempo. O tempo tende a não ser tão esmigalhado adotando-se uma duração maior. E compreende-se que possa ser assim porque neste tempo os alunos não estão passivamente sentados a ouvir. Eles podem mover-se, podem interagir. O tempo de projeto, sendo de implicação é também de atenção.
Ainda nesta variável, a generalidade das escolas começa o dia com 10 a 15 minutos de tempo comum de reflexão. É uma forma possível de gerar a sintonia, a preparação para a aprendizagem, a focalização num sentido educacionalmente relevante.
v) Agrupamento de alunos. A unidade turma de 20 ou 30 alunos perde relevância e deixa de ser a única unidade de referência organizadora. Como vimos, podemos ter na maior parte do tempo semanal grandes grupos de 50 a 60 alunos. As interações são por isso muito maiores e mais ricas. As oportunidades de encontro e de interconhecimento elevam-se. A lógica da segmentação e da segregação dilui-se.
É certo que nem todas as escolas adota esta solução, mantendo a turma tradicional embora a trabalhar segundo lógicas pedagógicas diferentes.
vi) Modos de trabalho pedagógico. Esta é a principal singularidade do modus operandi destas escolas que usam uma “tecnologia intensiva” para gerar a implicação e a aprendizagem. Como já referimos, não há aqui a cadeia de montagem, a exposição sistemática, o professor no centro a debitar um discurso. A lógica organizadora é colocar os alunos em ação fazendo lembrar o princípio pedagógico tão antigo proclamado no início do século XX por John Dewey, do learning by doing. A pedagogia é aqui a mãe de todas as promessas de libertação e de emancipação. Uma pedagogia da autonomia, da responsabilidade, da interação, do contrato, e que tão bons resultados parece gerar.
vii) Tecnologias digitais. Em praticamente todas as escolas os alunos, desde o final da primária (5º e 6º anos) usam tablets ou computadores pessoais como instrumentos basilares de trabalho, substituindo os manuais clássicos. Não quer isto dizer que não haja papel. Há muitos produtos produzidos manualmente e que estão expostos nas paredes das salas e dos corredores.
viii) Um tempo de professores. As escolas visitadas são possíveis porque têm professores que se dispuseram a ser autores, a ser criadores de novas possibilidades educativas. Porque quiseram ser professores numa outra inscrição profissional que lhes mais sentido. Porque viram que o trabalho colaborativo pode ser gratificante e uma forma de fuga à solidão e à angústia profissional. Porque viram a alegria no rosto e no coração dos seus alunos e isso é o seu principal alimento. Porque sabem, pelo saber da experiência feito, que outra escola é possível. Mais humana, mais atenta, mais próxima de realizar o potencial de cada ser humano. No final desta nota, regressamos à inscrição de Friedberg (1995): esta é uma realidade eminentemente política desejada e gerada pelos atores, pelas suas vontades, interações, estruturas que criam para que a vida tenha um outro sentido e um outro sabor.
Referências:
Friedberg, E. (1995). O Poder e a Regra - Dinâmicas da acção organizada. Lisboa: Instituto Piaget.
Hopkins, D.; Ainscow, M. (1994). School Improvement in an Era of Change. London: Cassel.
Sem comentários:
Enviar um comentário