segunda-feira, 24 de agosto de 2020

eBook | Cooperar para o sucesso com autonomia e flexibilidade curricular







A publicação, a 6 de julho, do Decreto-Lei n.º 55/2018 que institucionaliza o Programa de Autonomia e Flexibilidade Curricular (PAFC), desafia-nos a refletir sobre os desafios, as exigências e as implicações de um projeto que conduz as escolas e os professores não só a assumirem decisões curriculares capazes de suscitar um trabalho de formação culturalmente significativo, mas também a investirem noutros modos de organizar os espaços e os tempos de trabalho, bem como a proporem um outro tipo de atividades e estratégias que estimulem a inteligência, a autonomia solidária e a participação dos seus alunos na gestão do quotidiano da sala de aula. Num tempo educativo em que se enfrenta, também a partir de medidas legislativas concretas, a necessidade das escolas portuguesas responderem aos desafios de um mundo onde se exigem outros modos de ser, de estar e de intervir, precisamos de pensar sobre o que se tem feito nas escolas, sobre o que temos, mas também sobre o que se pode, ainda, fazer nas escolas, entendendo-as como uma oportunidade efetivamente para todos, conforme previsto no Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho. 

A reflexão em torno dos atos de educar e de aprender nas escolas não pode ser dissociada das particularidades que permitem configurar as escolas como contextos educativos incontornáveis na sociedade em que vivemos e que nos desafiam a refletir sobre as finalidades da Escola e do seu contributo para a apropriação de uma fatia decisiva do património cultural disponível, enquanto condição do processo de afirmação e desenvolvimento pessoal e social das crianças e dos jovens no seio da sociedade em que vivemos. É, assim, em nome da apropriação desse património, entendido como um conjunto de informações, instrumentos, procedimentos, atitudes e valores a partilhar, que se legitima o papel da Escola e, por consequência, se justifica que os atos de educar e de aprender sejam abordados em função das exigências e dos desafios subjacentes à assunção de um tal compromisso. Um compromisso que, por supor interpretações distintas e até contraditórias acerca do modo de o concretizar, nos confronta com diversas conceções acerca do que se entende por educar e aprender.

Entendo como muito importante esta obra, porque corresponde a uma reflexão em pro-cesso, alicerçada em projetos desenvolvidos ao longo dos últimos anos e integrados no projeto COOPERA – relatado no livro Cooperar na Sala de Aula para o Sucesso, de Silva, Lopes, & Moreira, 2018 –, e que prossegue, agora, com a publicação deste livro que permitirá ampliar a iniciativa no tempo e abrangendo todos os que poderão aprofundar a sua reflexão a partir dos textos e da abordagem que a coordenadora da obra, Sónia Moreira, e os seus convidados nos apresentam e que visam interpelar as mudanças propostas pelos novos normativos legais e alinhadas com a matriz de princípios, valores e áreas de competências e com as implicações práticas consideradas no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (Ministério da Educação, 2017). 

Neste sentido, estamos perante testemunhos muito inspiradores de educadores comprometidos com a Aprendizagem Cooperativa, dando testemunho de um conjunto de métodos ou técnicas que permitiram organizar e orientar o ensino e a aprendizagem, para que os seus alunos pudessem assumir diferentes papéis e fossem desafiados a aprender a partilhar entre si o conhecimento e as tarefas que os conduzem à aprendizagem (Johnson, Johnson, & Stanne, 2000). “Aprender de forma cooperativa implica aprender com recurso ao trabalho em grupo, embora nem todas as aprendizagens realizadas em grupo possam ser consideradas trabalho cooperativo“ (Silva, Lopes, & Moreira, 2018). 

Estamos perante um processo de mudança muito exigente na escola portuguesa a partir de práticas de Autonomia e de Flexibilidade Curricular, processo inevitavelmente atravessado por tensões derivadas de leituras do mundo distintas e que explicam opções educativas, curriculares, pedagógicas e didáticas diversas que, mais do que um problema, deverão ser percecionadas como condição da vida em sociedades que se afirmam como democráticas. Torna-se necessário agir e refletir sobre as diferentes iniciativas e opções. 

Entendo esta obra como muito útil já que se inicia com uma reflexão concetual sobre o PAFC e depois partilha com os leitores um conjunto de cinco projetos/propostas de ação pedagógica que podem inspirar as escolas e os professores a desenvolver os seus próprios projetos com o compromisso e a necessidade de os desenvolver com exigência e rigor quanto aos seus processos de operacionalização e de avaliação.

Sabemos que estamos perante um desafio político crucial que tem a ver tanto com a necessidade de discutirmos os desafios e as implicações do PAFC, mas, sobretudo, de discutirmos as conceções curriculares e pedagógicas que sustentam tais desafios e implicações, sendo necessário que se compreenda que estas problemáticas não poderão ser dissociadas da necessidade de se repensar o estatuto dos alunos e dos professores no âmbito dos projetos de educação escolar, bem como o estatuto do património de informações, instrumentos, procedimentos e atitudes que constituem a referência do trabalho a promover numa sala de aula.

Não podemos deixar de perguntar se um tal projeto não é contraditório com os valores que sustentam, em princípio, a vida numa sociedade democrática ou se é compatível a existência de uma sociedade do conhecimento com um projeto de formação que põe em causa e até despreza a colaboração como condição necessária que permite sustentar o desenvolvimento dos processos de aprendizagem, a realização de tarefas que envolvem um esforço comum e, ainda, o próprio processo de construção de saberes.

É o reconhecimento e a afirmação da necessidade de um projeto de formação sujeito a propósitos e a orientações distintos daqueles que acabamos de descrever que explica o investimento e a valorização no desenvolvimento de iniciativas que possam estimular a criação de ambientes de aprendizagem cooperativos, enquanto estratégia alternativa aos ambientes de aprendizagem organizados e geridos de forma competitiva. 

Não sendo esta uma problemática que se possa abordar, apenas na dimensão da organização e gestão do trabalho pedagógico nos espaços da sala de aula, importa afirmar que entendemos não podermos dissociar da configuração e das dinâmicas pedagógicas dos projetos educativos onde se enquadram. Isto é, o modo como se organiza e gere o trabalho pedagógico numa sala de aula terá que ser lido e interpretado quer à luz dos pressupostos ideológicos, políticos, sociais e culturais que enformam os projetos de educação escolar, quer à luz das finalidades e dos compromissos que justificam a importância destes projetos nas sociedades em que vivemos. Daí que se possa afirmar que a organização competitiva dos ambientes de aprendizagem decorre do seu vínculo a um projeto que entende a Escola como um contexto educativo, onde se concebe o processo de socialização cultural que aí tem lugar como um instrumento de gestão da ordem política e cultural do mundo que a Modernidade foi gerando, do mesmo modo que se pode considerar que a organização cooperativa desses ambientes tem a ver, por sua vez, quer com um outro tempo histórico e político, quer com outras leituras e interpretações acerca do papel da Escola e das suas atribuições no mundo em que vivemos. 

A reivindicação pedagógica em função da qual entendemos a necessidade de gerir e organizar cooperativamente os ambientes escolares é uma reivindicação da área da Pedagogia, mas também a partir da influência que os campos da Psicologia e da Sociologia têm vindo a exercer no campo da educação escolar. Trata-se de uma reivindicação reforçada à luz deste tempo histórico que enfrenta vicissitudes, exigências e desafios civilizacionais, políticos, económicos, sociais e culturais que correspondem a novas condições de vida no mundo, mas também a novos olhares sobre este mundo, as pessoas e as relações que estas mantêm entre si. As iniciativas que a coberto do «Movimento da Escola Nova» contribuíram para legitimar a necessidade de organizar e gerir cooperativamente o trabalho pedagógico numa sala de aula são exemplos de iniciativas incontornáveis. Pode mesmo afirmar-se que esta dimensão constitui uma das dimensões do projeto de inovação pedagógica que esse movimento pretendia propor, a qual tende a ser enfatizada, sobretudo, pelas reflexões que John Dewey (1966; 2002) e Roger Cousinet (1945) protagonizaram. 

Para Dewey, a Escola tem que assumir de forma inequívoca uma “função social” (Dewey, 1966, p. 10), a qual terá que ser entendida como uma das principais finalidades das novas escolas a construir. Entende que a “educação é uma necessidade da vida” (idem, p. 1), as-sumindo que aquilo que “a nutrição e a reprodução são para a vida fisiológica, é a educação para a vida social” (idem, p. 9), na medida em que compete à educação favorecer “a partilha de experiências até que estas se tornem num bem comum” (ibidem). 

“O que ocorreu” – escreve Dewey – “foi uma mudança radical das condições de vida, e só uma mudança igualmente radical no campo da educação produzirá resultados palpáveis” (idem, p. 22). Neste sentido, e tendo em conta que aquilo que “impede a escola dos nossos dias de se organizar como uma unidade social natural é exactamente a ausência desta componente de actividade comum e produtiva” (idem, p. 24), desafiando-nos a compreender a necessidade da mudança e da sua extensão, já que nas salas de aula das escolas subordinadas a uma racionalidade pedagógica tradicional “faltam o motivo e o cimento da organização social” (Dewey, 2002, p. 24), o que leva Dewey a concluir que do “ponto de vista ético, a trágica debilidade da escola de hoje reside na sua ambição de preparar os futuros membros do tecido social num meio em que as condições do espírito social faltam visivelmente” (ibidem). Acusação que especifica ao afirmar que “o trabalho escolar consiste apenas em decorar as lições” e “a assistência mútua, em vez de ser a forma mais natural de cooperação e associação, torna-se um esforço clandestino para aliviar o parceiro dos deve-res que lhe incumbem” (idem, p. 25), de tal forma que “o facto de uma criança ajudar outra nas suas tarefas passou a ser considerado um delito” (ibidem). 

É em função desta necessidade de transformar cada uma das nossas escolas numa comunidade e, como condição educativa fundamental no âmbito do projeto escolar que se inicie e exercite “cada um dos novos membros da sociedade na participação numa comunidade tão reduzida, impregnando-os dum espírito de altruísmo” (Dewey, 2002, p. 35). Trata-se de uma recomendação oposta ao modelo escolar competitivo onde “cada criança deve agir sozinha, sem conhecer o vizinho, sem o ajudar, sem ser ajudada por ele” (Cousinet, 1945, p. 34), situação que contribui para que as escolas se afirmem como espaços insulares e antissociais, no seio dos quais cada aluno é obrigado a ser “de tal hora a tal hora um ser exclusivamente individual, depois, durante um curto período, um ser social, para depois voltar a ser individual, e assim por diante” (ibidem). Espaços onde se tenta contrariar a resistência ativa dos alunos, face a uma educação tão contranatura, através do exercício de uma “autoridade magistral” (ibidem), a qual impede a criança “de usufruir de uma vida social” (ibidem), sem ser, no entanto, tão eficaz quanto seria desejável, já que os alunos continuam a «soprar», a «copiar» e, até, a falar (Cousinet, 1945). Daí que “se possa afirmar, sem se ser excessivo, que o professor que gasta mais tempo a impedir que os seus alunos falem” (idem, p. 34) do que a dar as suas lições não contribui para resolver o problema, mas para o agravar, do ponto de vista das suas consequências educativas. É que, se o professor impõe o silêncio e a imobilidade, impondo também ou julgando impor por via disso a recetividade dos alunos, acaba por contribuir, por causa dessa atitude, para que ecluda “uma luta surda e secreta que convida as crianças, dentro da turma, à dissimulação e à fraude, defeitos que são apenas obra do mestre, já que lhe bastaria, para os fazer desaparecer, que autorizasse a vida social e a cooperação” (idem, p. 35). Mas, mesmo quando a disciplina imposta é tão rígida que consegue reprimir qualquer laivo de interação social dentro da sala de aula, isso, na leitura proposta por Cousinet, não contribui para resolver o problema, mas para o agravar, do ponto de vista das suas consequências educativas. 

Circunstâncias que justificam a necessidade de transformar a Escola e de propor, no âmbito dessa transformação, um conjunto de dispositivos de mediação pedagógica, como a Aprendizagem Cooperativa e o conjunto de métodos ou técnicas que permitam organizar e orientar o ensino e a aprendizagem, para que os alunos assumam diferentes papéis e aprendam a partilhar entre si o conhecimento e as tarefas que conduzem à aprendizagem (Johnson, Johnson, & Stanne, 2000), estimulando o desenvolvimento do processo de socialização das crianças, assim como facilitando, igualmente, a comunicação entre o professor e o aluno, permitindo ao professor, entre outras coisas, compreender tanto as dificuldades reais como os interesses dos alunos.

Não se pode deixar de referir a reflexão de Paulo Freire como um contributo incontornável no âmbito do debate em causa. É, sobretudo, a partir do modo como Freire valoriza uma educação pela comunicação, em detrimento de uma educação extensiva (Freire, 1983), que a dimensão da cooperação como fator estruturante de qualquer projeto de aprendizagem adquire centralidade pedagógica. A partir da oposição entre os dois tipos de educação enunciados, Freire confronta as práticas educativas extensivas que se desenvolvem em função de estratégias instrutivas de transmissão do saber, como a educação pela comunicação através da qual se defende que o saber se constrói em função do relacionamento entre interlocutores que, em conjunto, buscam encontrar um sentido para os significados contidos nas mensagens que emitem. Assim se delineiam dois projetos educativos com propósitos diferentes. O projeto da educação extensiva que constitui um meio de promover a conformidade com a ordem social estabelecida – mais especificamente com as normas, os padrões e os valores estabelecidos pelas classes dominantes –, o qual ocorre através da construção de uma relação onde um dos parceiros transformado em objeto recebe de uma maneira dócil e passiva os conteúdos transmitidos por aquele que detém o controlo do processo de inculcação do saber e o do projeto da educação pela comunicação que visa contribuir para uma atuação transformadora, por parte deste, sobre a realidade física e social que o envolve e para o desenvolvimento de uma reflexão crítica de natureza pessoal sobre o próprio sentido do pro-cesso de construção do conhecimento. 

A importância deste livro tem também a ver com o modo como contribui para o debate em torno dos atos de educar, formar e aprender, quer, subsequentemente, em função do modo como pode apoiar a tomada de decisões pedagógicas por parte dos professores no âmbito das tarefas que lhes dizem respeito. Neste sentido, pode afirmar-se que a profissão docente se concretiza e se afirma, acima de tudo, na sala de aula, a partir dos desafios e das atividades que aí acontecem, ainda que, para que isso ocorra, se torne necessário ter em conta o tipo de relações que os professores estabelecem entre si, o tipo de envolvimento que protagonizam na construção do seu conhecimento profissional ou a necessidade de re-pensar as suas responsabilidades sociais, a partir de outros valores e de outros parâmetros (Cosme, 2006). 

Daí que o espaço da sala de aula deva ser repensado como “uma subcomunidade de discentes recíprocos, com o professor a orquestrar os processos” (Bruner, 2000, p. 42). Um espaço onde se pode constatar que o papel do professor e a sua autoridade não se veem reduzidos ou tão pouco postos em causa. “Pelo contrário,” – afirma Jerome Bruner – “o professor recebe a função adicional de encorajar os outros a partilhar essa autoridade” (idem). Uma situação que Marcel Postic explicita quando esclarece, a propósito da relação entre a formulação dos contratos pedagógicos e o exercício do poder na sala de aula, que “não se trata de distribuir poder, nem de conceder uma parte do poder ao grupo. É uma dialéctica do poder que se deve pôr em prática, porque cada um – o docente, os membros do grupo – deve ter em conta as iniciativas, as responsabilidades que uns e outros exercem e as regras estabelecidas em cooperação” (Postic, 1984, p. 182). 

Entendo que a reflexão que este livro nos propõe adquire uma importância inquestionável como uma oportunidade que nos conduz a interpelar os vários projetos de ação educativa, os diferentes modos de trabalho pedagógico e a forma como configuramos o nosso papel enquanto docentes.

Defendo que os professores se devem assumir como interlocutores qualificados e que os projetos de ação educativa devem ser entendidos como emanações do paradigma pedagógico da comunicação, o que significa que se valoriza a qualidade dos mais variados tipos de interações que acontecem numa sala de aula como fator potenciador das aprendizagens dos alunos que, neste caso, são entendidas em função do processo de apropriação do património cultural disponível, enquanto condição do processo de afirmação e desenvolvimento pessoal e social das crianças e dos jovens no seio da sociedade em que vivemos. 

Ao apoiar de forma ativa e intencional o processo de formação pessoal e social dos seus alunos, não fazendo por eles o que só a eles compete fazer, mas não os deixando entregues a si próprios sem rumo e sem apoio, o professor, como um interlocutor qualificado, passa a ser entendido como alguém que estimula, negoceia e cria as condições para que os seus alunos adquiram autonomia intelectual e sócio-moral, tornando-se, assim, capazes de utilizar e de recriar os instrumentos, as informações e os procedimentos que lhes permitam pensar o mundo que os rodeia e agir aí de forma informada e eticamente congruente com os valores próprios de uma sociedade democrática.

Ariana Cosme
Docente e Investigadora da Universidade do Porto 
Gondomar, julho de 2019


Referências
Bruner, J. S. (2000). Cultura da educação. Lisboa: Edições 70.

Cosme, A. (2006). Ser professor numa escola e num tempo de incertezas: Desafios, exigências e dilemas profissionais. Tese de doutoramento, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. 

Cousinet, R. (1945). Une méthode de travail libre par groupes. Paris: Les Éditions du Cerf.

Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho – Estabelece o regime jurídico da educação inclusiva. Disponível em: https://dre.pt/web/guest/pesquisa/-/search/115652961/details/normal?q=Decreto-Lei+n.%C2%BA%20 54%2F2018

Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho – Estabelece o currículo dos ensinos básico e secundário e os princípios orientadores da avaliação das aprendizagens. Disponível em: https://dre.pt/web/guest/ pesquisa/-/search/115652962/details/normal?q=Decreto-Lei+n.%C2%BA%2055%2F2018

Dewey, J. (1966). Democracy and Education. New York: Macmillan Company.Dewey, J. (2002). A escola e a sociedade. A criança e o currículo. Lisboa: Relógio d’Água

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