domingo, 26 de julho de 2020

A carta da Harper's



Texto de Pedro Mexia




AS INCOMODIDADES QUE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO TRAZ DEVEM SER CONTRARIADAS COM MAIS LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Q

uem me dera aquele enfado cínico que qualifica tudo, incluindo a carta aberta da revista “Harper’s”, como um tédio ou uma banalidade, ou uma resposta escusada a uma ameaça imaginária. Quem me dera que não fosse crescentemente notória, como se escreve nesse texto publicado há dias, “uma intolerância face a opiniões discordantes, uma onda de humilhação pública e ostracismo, a tendência para dissolver questões políticas complexas numa certeza moral ofuscante”. Quem me dera que o iliberalismo fosse apenas o dos iliberais, e não o de tantos progressistas, herdeiros das Luzes e do pensamento crítico. Quem me dera que não houvesse, na academia, no jornalismo, nas artes, uma apetência pelo dogma, a coerção, a substituição de indesejáveis consensos por outros consensos igualmente nefastos. Quem me dera que esta passagem da carta fosse uma inventona dos signatários: “Editores são despedidos por publicarem artigos controversos; livros são retirados por suposta inautenticidade; jornalistas são impedidos de escrever sobre certos assuntos; professores são investigados por citar obras literárias nas aulas; um investigador é demitido por fazer circular um estudo académico com peer-reviewing; e responsáveis de organizações são afastados muitas por vezes por causa de equívocos ou inabilidades.”

É preciso dizer, e a carta dos 153 da “Harper’s” diz, que não estão em causa as reivindicações de justiça e igualdade, étnica ou de género, nem a denúncia e a sanção judicial de actos criminosos, nem a reforma das instituições. É preciso dizer, e a carta da “Harper’s” diz, que em alguns países, nomeadamente na América, há líderes eleitos que têm contribuído muitíssimo para a degradação do espaço público. Mas também é urgente não combater o fogo com o fogo. As incomodidades que a liberdade de expressão traz devem ser contrariadas com mais liberdade de expressão, “robusta” e “cáustica”, em vez de passarmos a aceitar como normais as ameaças, agressões, demissões por discordância, interdições. Opor ao iliberalismo político e à “democracia iliberal” um catálogo cada vez mais vigiado daquilo que se pode defender, e como, e porquê, e por quem, é autodestrutivo.
Os 153 da “Harper’s”, lembre-se, são intelectuais e artistas de diversas latitudes, alguns dos quais elogiados como paradigmas da liberdade até anteontem. Escritores como Salman Rushdie, condenado à morte por causa de um romance; Margaret Atwood, crítica do patriarcado e ídolo de tantas mulheres e de tantos leitores e espectadores; Kamel Daoud, que enfrenta o fundamentalismo islâmico in loco. Académicos, críticos e historiadores como Anne Applebaum, especialista do Gulag soviético; Noam Chomsky, linguista emérito e activista anti-imperialista e anticapitalista; Gloria Steinem, uma das mais influentes feministas da sua geração. Ideologicamente, e além dos já citados, os 153 vão de conhecidos militantes da esquerda americana, como Katha Pollitt, a Francis Fukuyama, guru dos neoconservadores. E o elenco inclui o católico progressista Garry Wills; a linha da frente da esquerda liberal, com Michael Ignatieff, Paul Berman, Ian Buruma, Mark Lilla ou Michael Walzer; centristas como Fareed Zakaria; conservadores como David Frum ou David Brooks. E Garry Kasparov, destacado adversário do comunismo e depois do putinismo. Alguns já foram, nos últimos anos, boicotados, cancelados, desconvidados e afastados de instituições, ou seja, não reagem a um horizonte longínquo mas ao estado actual das coisas.
Desde que a carta foi publicada, apareceram numerosos artigos criticando ferozmente, e algumas vezes inteligentemente, o texto e a atitude dos 153, o que é saudável e desejável. Mas também assistimos ao lamentável pânico intelectual que levou alguns dos signatários a retirar a assinatura, geralmente porque descobriram que havia outros signatários dos quais discordavam. O jornalista canadiano Malcolm Gladwell, que assinou a carta e mantém aquilo que assinou, comentou assim o gesto dos desistentes: “Assinei a carta da ‘Harper’s’ porque havia muitas pessoas que assinaram a carta da ‘Harper’s’ de quem eu discordava. Julguei que era mesmo isso que a carta da ‘Harper’s’ defendia.”
Pedro Mexia, E-Revista Expresso, Expresso, Semanário #2490, 18 de julho de 2020

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