domingo, 12 de julho de 2020

Música nas trincheiras




OS CADERNOS E OS DIAS
HISTÓRIA FRAGMENTADA DO MUNDO
POR GONÇALO M. TAVARES



Música nas trincheiras
1.
Animais periódicos, diários, que têm apetite súbito
quando a presa está fraca,
fazem da fotografia de um falhanço banquete
para a enorme pançarra dos muitos sujeitos de saliva na boca.
Notícias com rostos apanhados em descalabro
são vendidas no mundo a peso e metro,
régua que mede em dólares e não em centímetros.
O dólar como medida internacional da fotografia
e do espaço.
Quantos dólares tem esta largura e este comprimento?
Uma hipótese: medir o espaço assim, de forma literal.
Em vez de régua de carpinteiro, notas de 50 e 100,
umas à frente de outras ou sobrepostas como soldados mudos;
e assim se mede o espaço: quantas notas deitadas
ao sol e sombra tem cada lugar e objecto do mundo?
2.
Largura e comprimento em dólares ou euros, sim,
mas a altura, essa, vem em distância a esse Deus
que não se sabe exactamente onde está; uma altura indecisa
e hesitante que balança entre o muitíssimo
e o muito pouco.
Diferença entre crente e não crente, medida assim:
em quilómetro concreto. Mais perto de Deus,
como se este fosse vizinho, estão os que não o adoram
assim tanto.
Demasiado longe ou perto turva a visão,
só uma distância média entre o sujeito e o objecto adorado
pode aumentar no coração o entusiasmo.

OS SINAIS MAIS IMPORTANTES NO SÉCULO XXI NÃO VIRÃO EM LUZ, MAS EM CORTE BRUSCO DA LUCIDEZ E DA VISÃO. O GRANDE SINAL AÍ ESTÁ: DIANTE DO EVIDENTE, NADA ENTENDEMOS

3.
Demasiado italiana, diziam no início os nazis —
saudação com braço estendido à velha Roma;
mão esticada, virada para a terra, e braço numa diagonal
entre o avião no alto e o corpo quando morto deitado no solo.
Manifestações no século XXI na televisão e na Europa
imitam o gesto do mal;
em 2020, os gestos não são apenas propriedade dos corpos
mas também da História. Não apenas movimentos que esganam um pescoço ou disparam são bélicos,
há nos símbolos essa potência de ocupar o dia seguinte
de modo manso, em posição de bom ouvinte,
ou em agressivo anúncio de terra a queimar.
Nas trincheiras da I Guerra, em 1917,
a expectativa dos soldados e o aborrecimento nervoso
que existe antes de matar ou ser morto, era, claro, tempo decisivo,
e aí, pela primeira vez, o Estado colocou nas trincheiras,
música; o entretenimento via rádio e televisão tem aí
o seu big bang. A partir daqui mesmo 5 minutos antes
de morreres ou matares podem os teus ouvidos encantar-se
e quem souber sapateado que avance; a melhor das danças
e a mais bela festa até pode ser a última.
Entretidos vão, não nos seus barcos, mas nos seus sofás
posicionados de modo pouco guerreiro diante da televisão, cidadãos de uma Europa inundada de documentários
sobre o novo vírus e a bela história do futuro a preto e branco;
e nas suas trincheiras sentadas estão cómodos no cérebro e nas áreas anexas mais para baixo, enquanto lá fora gestos a imitar
o Império de Roma e o III Reich avançam sem um oh sequer
pelas avenidas e praças da Europa e das Américas; como
se a História para trás não existisse, e apenas o mundo
começasse o seu cronómetro a sério, quando o pacato cidadão
entretido liga a televisão.
4.
Parece que um raio no Brasil apareceu no céu e era enorme;
a mais longa luz natural que veio do alto nos últimos tempos.
Mas os sinais mais importantes no século XXI não virão em luz,
mas em corte brusco da lucidez e da visão.
O grande sinal aí está: diante do evidente, nada entendemos;
a História está a ser fechada no quarto escuro e quando a deixarmos sair talvez seja tarde, demasiado tarde, para
inventar o fogo.
Gonçalo M. Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

E-Revista Expresso, edição 2488, de 4 de julho de 2020

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