Que coisa são as nuvens
José Tolentino Mendonça
Não poderemos voltar à etapa precedente, como se esta experiência traumática tivesse sido uma interrupção, mas também não sabemos bem aquilo em que nos tornaremos, como indivíduos e comunidades
A
coragem destas horas não se joga apenas na primeira frente de combate à pandemia, mas também na resiliência e ousadia necessárias para pensar no que seremos no pós-covid-19. Para já, torna-se claro que não poderemos simplesmente voltar à etapa precedente, como se esta experiência traumática tivesse apenas sido uma interrupção, mas também não sabemos bem aquilo em que nos tornaremos, como indivíduos e comunidades. E se esta talvez seja a provação mais dura, é também a mais desafiante: o confronto com uma nova realidade que tem de começar, e ter de o fazer não numa zona de certezas como gostaríamos, mas ainda num instável território de transição, que se prolongará. Por isso, é importante que nos coloquemos perguntas, as mais díspares, as que têm emergido na corrente destes dias e outras ainda, e que as debatamos.
1
O processo gerado pelo vírus acelerará apenas as assimetrias e os egoísmos do velho mundo ou motivou-nos a compreender que estamos no mesmo barco e que só há futuro na cooperação e na implementação de outros modelos de existência coletiva?
2
Quando as portas das nossas casas se reabrirem, sairemos pesados e a medo, incapazes de vencer a distância que nos separa dos outros ou vamo-nos abraçar como irmãos reencontrados? Perderemos ou não a espontaneidade? Finalmente ultrapassaremos a paranoia do outro como rival, estranho e inimigo para pensá-lo como semelhante e aliado?
3
Quando reabrirmos as fronteiras passaremos, de facto, para uma nova etapa da globalização, mais conscientes dos riscos que ela comporta (pandemias, danos ambientais, mutações climáticas, precarização do trabalho e exclusão) e também mais capazes de construir uma nova ordem social e planetária assente na justiça?
É importante que nos coloquemos perguntas, as mais díspares, as que têm emergido na corrente destes dias e outras ainda, e que as debatamos
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Deixaremos de considerar a terra um objeto para ser ilimitadamente explorado, segundo os nossos interesses, ou vingará a ideia de que a terra e o cosmos sejam considerados, pelo direito internacional, como sistemas vivos, com o seu equilíbrio e as suas regras?
5
Compreenderemos finalmente que está tudo interligado, como insistiu o Papa Francisco na encíclica “Laudato Si”: o grito da terra e o grito dos pobres, a situação sub-humana a que estão condenadas multidões de seres humanos e a fragilidade ignorada do planeta?
6
Ainda fará sentido a previsão que decretava o fim da alimentação cozinhada em casa, pois todos nos tornaríamos clientes de uma app de food delivery? Ou reencontraremos outros ritmos que não os da ditadura da vida frenética (aprendendo a desacelerar) e outros sabores que nutram também a alma (reaprendendo a cultivar a nossa humanidade)?
7
A União Europeia terminará, como um monumental museu de boas intenções que se afunda, ou esta será precisamente a estação do seu relançamento?
8
Saberemos construir alternativas à massificação e reinventar uma escala mais humana para a convivência, para a arquitetura das nossas cidades e para a qualidade das nossas relações?
9
Saberemos cuidar dos médicos, enfermeiros e cuidadores que tiveram a experiência direta deste trauma? Rapidamente preferimos declará-los como heróis, e são, mas são também seres humanos vulneráveis como nós, que tiveram de esgotar os seus recursos para enfrentar a dor, o medo e a solidão dos pacientes, muitas vezes em estruturas inadequadas e tendo de operar com meios insuficientes. A compaixão e o cuidado deixam, não raro, uma fadiga interna, que tem de ser tratada. Como o faremos?
10
Triunfará uma visão mais integradora da vida, que compreenda a importância de valores como o dom, a gratuidade e a partilha, e nos capacite, por exemplo, para uma síntese mais equilibrada entre pessoa e comunidade, entre vida material e vida espiritual?
E-Revista Expresso, dia 18 de abril de 2020
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