Borges e eu
“Ao outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho
por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco
de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu
nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agradam-me os
relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o
sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas
de um modo vaidoso que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado
afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que
Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me. Não me
custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me
podem salvar, talvez porque o bom já não seja de alguém, nem sequer do outro,
mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais, estou destinado a perder-me
definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco
a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de
falsificar e magnificar. Espinosa entendeu que todas as coisas querem
perseverar no seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre.
Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me
menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma
viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde
aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos agora são de Borges e
terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco,
tudo é do esquecimento ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.”
Borges, Jorge Luis, "Borges e Eu", in Ficções, Lisboa: Quetzal Editores, 2013
Texto dito pelo próprio autor, Jorge Luís Borges
Publicado pela primeira vez em 1944, Ficções é um dos livros mais apreciados e, por certo, um dos mais representativos da obra borgesiana. Nele se reúnem textos como Pierre Menard, autor do Quixote, As ruínas circulares, A Biblioteca de Babel, O jardim dos caminhos que se bifurcam, Funes, o memorioso e Borges e eu (que aqui divulgamos) - cada um deles uma obra-prima e exemplo da grandeza e do génio de Jorge Luis Borges.
Livro disponível na Biblioteca.
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