domingo, 22 de julho de 2018

É urgente podar as palavras





 
As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras nos absorvem, não nos deixam: são como garras, vem nos livros, nos jornais, nos mensagens publicitárias, nos rótulos dos filmes, nas cartas e nos cartais. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, intimidam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou ácidas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com azeite de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em paz e em harmonia com suas contrárias e inimigos. Por isso a pessoas fazem o contrario do que pensa crendo pensar o que fazem.

Há muitas palavras. E estão os discursos, que são palavras apoiadas umas em outras, em equilíbrio instável graças a uma sintaxe precária finalizadas com chave de ouro: “Graças. Digo”. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e cerram sessões, se lançam cortinas de fumo o se dispõem cortinas de veludo. São brindes, orações, conferências e colóquios. Por meio dos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E logo as palavras dos discursos aparecem postas em papéis, pintadas em tinta de imprensa “e por essa via entram na imortalidade do Verbo. Ao lado de Sócrates, o presidente da junta domina o discurso que abriu o torneira da fonte. E fluem as palavras, tão fluidas como o “precioso líquido”. Fluem interminavelmente, inundam o solo, chegam até as joelhos, à cintura, a os ombros, ao colo. É o dilúvio universal, um coro desarmado que brota de milhares de bocas. A terra segue seu caminho envolta em um clamor de loucos, a gritos, a berros, envolta também em um murmúrio manso represado e conciliador. De todo há no coro: tenores e contraltos, cantantes baixos, sopranos de dó de peito fácil, barítonos acolchoados, contraltos de voz-surpresa. Nos intervalos se ouve o ponto. E todo isso aturde as estrelas e perturbam as comunicações, como as tempestades solares.

Porque as palavras têm deixado de comunicar. Cada palavra é dita para que não se ouça outra. A palavra, até quando não afirma, se afirma: a palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra não mostra. A palavra disfarça.

Daí que resulte urgente podar as palavras para que a plantação se converta em colheita. Daí que as palavras sejam instrumento de morte ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que vale o silêncio do ato.

Há, também, o silêncio. O silêncio é, por definição, o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calado sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. “Mas só o trigo dá pão”.
 
José Saramago
 

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