domingo, 16 de março de 2014

800 anos da língua portuguesa



 
A língua Portuguesa
 
Esta língua que eu amo
com seu bárbaro lanho
seu mel
seu helénico sal
e azeitona
esta limpidez
que se nimba
de surda
quanta vez
esta maravilha
assassinadíssima
por quase todos que a falam
este requebro
esta ânfora
cantante
esta máscula espada
graciosíssima
capaz de brandir os caminhos todos
de todos os ases
de todas as danças
esta voz
esta língua
soberba
capaz de todas as cores
todos os riscos
de expressão
(e ganha sempre a partida)
esta língua portuguesa
capaz de tudo
como uma mulher realmente
apaixonada
esta língua
é minha Índia constante
minha núpcia ininterrupta
meu amor para sempre
minha libertinagem
minha eterna
 
virgindade
 
LACERDA, Alberto de (1984). Oferenda I, Lisboa: IN-CM, pp. 316-317
 


Comemoram-se este ano os 800 anos do primeiros textos escritos em língua portuguesa.
A efeméride toma por referência o segundo testamento de D. Afonso II, escrito em 27 de junho de 1214, do qual existem dois exemplares: as cópias enviadas ao arcebispo de Braga e ao arcebispo de Santiago.
 
 
 
"Que se pode desejar da língua portuguesa que ela não tenha?"
(BARROS, João, Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa: Faculdade de Letras, p. 399)
 
 
A pergunta, retórica, que expressa obliquamente os atributos da língua lusa,  é feita por João de Barros, no Diálogo em louvor da nossa linguagem.
 
Mas é no "Diálogo I" de A Corte na Aldeia que Rodrigues Lobo apresenta aquele que é talvez o maior elogio da língua portuguesa:
 
"Tem de todas as línguas a melhor: a pronunciação de Latina, a origem da Grega, a familiaridade da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da Italiana."
 
No seu artigo Elogios da Língua Portuguesa, publicado em Máthssis 15, 2006 , pp. 257-263, Maria Helena da Rocha Pereira lembra-nos, no entanto, que
É em António Ferreira, todos o sabem, que principiam os elogios da Língua Portuguesa. Numa época, portanto, em que o bilinguismo literário era não só corrente, como praticado pela generalidade dos poetas, desde Gil Vicente a Camões, destaca-se cedo o protesto deste doutor conimbricense (nascido, aliás, na capital), que escreve uma longa carta em verso ao seu amigo Pedro de Andrade Caminha, em que, depois de o situar entre os paladinos do renascimento (“em ti quiseram / as Musas renovar a Antiguidade”), o adverte solenemente da obrigação em que todo o escritor se encontra de cultivar, acima de tudo a própria língua:
Do que antigamente mais pregaram
todos os que escreveram foi honrar
a própria língua, e nisso trabalharam.
Cada um andava pola mais ornar
com cópia, com sentenças, e com arte,
com que pudesse d’outras triunfar.
[…]  A exortação adquire um tom mais veemente a partir do verso 104, até que atinge a sua mais alta expressão no mais célebre dos tercetos do autor:
Floreça, fale, cante, ouça-se e viva
a portuguesa língua, e já, onde for,
senhora vá de si, soberba e altiva.
 
Os tercetos cometem a Andrade Caminha a missão de demonstrar a capacidade do idioma nacional."
 
 O artigo de M. Helena Rocha Pereira está disponível on-line em http://z3950.crb.ucp.pt/biblioteca/Mathesis/Mat15/Mathesis15_257.pdf
 

 
Língua com história, que é a própria história de um país que uniu mares e povos, a língua portuguesa é, por vezes, maltratada.
 
 
 
Língua mater dolorosa


Tu que foste do Lácio a flor do pinho
dos trovadores a leda a bem-talhada

de oito séculos a cal o pão e o vinho
de Luís Vaz a chama joalhada

 
tu o casulo o vaso o ventre o ninho
e que sôbolos rios pendurada

foste a harpa lunar do peregrino
tu que depois de ti não há mais nada,

 
eis-te bobo da corja coribântica:

a canalha apedreja-te a semântica
e os teus verbos feridos vão de maca.

 Já na glote és cascalho és malho és má ­língua,

de brisa barco e bronze foste a língua;
língua serás ainda... mas de vaca.




 
Lamento para a língua portuguesa

 não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia a dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
mais valia que fossem de outra sorte
em cada um a força da vontade
e tão filosofais melancolias
nessa escusada busca da verdade
e que a ti nos prendesse melhor grade.
bem que ao longo do tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós os teus cristais,
e entre gentes remotas descobrias
o que não eram notas tropicais
mas coisas tuas que não tinhas mais,
perdidas no enredar das nossas vias
por desvairados, lúgubres sinais,
mísera sorte, estranha condição,
em que, por nos perdermos, te perdias.
neste turvo presente tu te esvais,
por ser combate de armas desiguais.
matam-te a casa, a escola, a profissão,
a técnica, a ciência, a propaganda,
o discurso político, a paixão
de estranhas novidades, a ciranda
da violência alvar que não abranda
entre rádios, jornais, televisão.
e toda a gente o diz, mesmo essa que anda
por tempos de ignomínia mais feliz
e o repete por luxo e não comanda,
com o bafo de hienas dos covis,
mais que uma vela vã nos ventos panda
cheia do podre cheiro a que tresanda.
foste memória, música e matriz
de um áspero combate: apreender
e dominar o mundo e as mais subtis
equações em que é igual a xis
qualquer das dimensões do conhecer,
dizer de amor e morte, e a quem quis
e soube utilizar-te, do viver,
do mais simples viver quotidiano,
de ilusões e silêncios, desengano,
sombras e luz, risadas e prazer
e dor e sofrimento, e de ano a ano,
passarem aves, ceifas, estações,
o trabalho, o sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir a todo o pano,
e bonanças também e tais razões
que no mundo costumam suceder
e deslumbram na só variedade
de seu modo, lugar e qualidade,
e coisas certas, inexactidões,
venturas, infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e monções,
e os caminhos da terra a percorrer,
e arados, atrelagens e veleiros,
pedacinhos de conchas, verde jade,
doces luminescências e luzeiros,
que podias dizer e desdizer
no teu corpo de tempo e liberdade.
agora que és refugo e cicatriz
esperança nenhuma hás-de manter:
o teu próprio domínio foi proscrito,
laje de lousa gasta em que algum giz
se esborratou informe em borrões vis.
de assim acontecer, ficou-te o mito
de seres de vastos, vários e distantes
mundos que serves mal nos degradantes
modos de nós contigo. nem o grito
da vida e do poema são bastantes,
por ser devido a um outro e duro atrito
que tu partiste até as próprias jantes
nos estradões da história: estava escrito
que iam desconjuntar-te os teus falantes
na terra em que nasceste. eu acredito
que te fizeram avaria grossa.
não rodarás nas rotas como dantes,
quer murmures, escrevas, fales, cantes,
mas apesar de tudo ainda és nossa,
e crescemos em ti. nem imaginas
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vidas novas repentinas.
enredada em vilezas, ódios, troça,
no teu próprio país te contaminas
e é dele essa miséria que te roça.
mas com o que te resta me iluminas.





















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