terça-feira, 11 de abril de 2023

A inteligência artificial está a tomar conta do seu “e-mail”

 

 

 

A paixão da criação, de Leonid Pasternak  (pormenor), 1880

 

 

Estamos a atravessar um período de entusiasmo em torno da Inteligência Artificial, à medida que os utilizadores encontram tecnologias genuinamente estimulantes, com novas possibilidades e promessas: tornar o trabalho mais fácil ou mais produtivo, dar-lhe uma vantagem, ficando tudo o resto igual

TEXTO JOHN HERRMAN JORNALISTA DA “NEW YORK MAGAZINE”

C

om o lançamento de ferramentas como o DALL-E e o ChatGPT, a Google — outrora o presumível líder da indústria em investigação no campo da inteligência artificial (IA) — vê-se, de repente, a tentar acertar o passo. A ascensão do OpenAI foi, supostamente, encarada como um “alerta vermelho” na empresa que estava há anos a trabalhar, silenciosamente e sem sucesso, em ferramentas semelhantes. Agora, rapidamente, a Google está a readaptar a sua linha de produtos com IA.

No mês passado apresentou a sua abordagem a uma versão chatty do seu motor de busca. Há dias partilhou mais detalhes sobre o Gmail e o Google Docs assistidos por IA. No Gmail existem ferramentas que irão tentar compor ou editar e-mails inteiros, bem como ferramentas para analisar e resumir longos segmentos de texto. No Docs existem ferramentas para gerar texto a partir de ordens simples ou outros conteúdos. Uma longa discussão por e-mail é transformada em “resumo” e, em seguida, num slide deck, ilustrada com imagens geradas por computador.

Vale a pena assistir ao vídeo promocional da Google por dois motivos. Por oposição a ferramentas como o ChatGPT, que são bastante capazes mas funcionam principalmente como demonstrações técnicas de uso geral e ferramentas de marketing, este vídeo é um exemplo de como uma grande empresa pensa que o software alimentado por um grande modelo de linguagem, ou LLM (na sua sigla inglesa, Large Language Model), mudará os seus negócios e produtos existentes, alguns dos quais já utilizamos — esses recursos serão onde a nova classe de ferramentas de IA enfrentará um teste à sua utilidade real.

A Google, na sua ânsia de mostrar uma gama dispersa de novos recursos, também fez, sem querer, algo engraçado. Depois de automatizar a criação de uma campanha de marketing sem a participação humana, o anfitrião termina o vídeo enviando à sua equipa uma nota de agradecimento gerada por computador. Obrigado pelo quê? A Google faz, agora, os decks e escreve todos esses e-mails de clien­tes. Tenho a certeza de que também será capaz de escrever uma boa carta de despedimento.


Mais interessante é a maneira como essas características parecem estar em conflito entre si. Por um lado, existem várias maneiras de gerar textos de forma mais fácil e rápida: ferramentas para compor e-mails completos a partir de resumos, ou seja, transformar uma pequena quantidade de texto num monte de texto; ferramentas para sugerir respostas completas a e-mails em vez das já populares respostas automáticas que os utilizadores do Gmail usam há anos; ferramentas para gerar e-mails personalizados para uma lista inteira de destinatários; e ferramentas para gerar textos enormes. Para pessoas cujo trabalho envolve gerar muito conteúdo, ou talvez para quem a criação de muito conteúdo é um desempenho de trabalho convincente, tal tem evidentes utilizações possíveis — se, claro, for bom naquilo que faz.

Por outro lado, para aqueles que podem interagir com pessoas que têm esses empregos — ou seja, aqueles que podem receber este novo conteúdo abundante —, esses recursos têm um significado um pouco diferente. Mal pode esperar que os seus colegas de trabalho se tornem muito mais verbosos, transformando cada “parece-me bem” numa carta de três parágrafos? Está contente porque o tipo de e-mails em massa, semipersonalizados, que costuma receber de grandes marcas com departamentos de marketing (ou de spammers e phishers) estão agora ao alcance de todas as empresas com uma conta Google? Está ansioso por questionar se aquela carta de condolências adorável que um amigo de longa data lhe enviou foi inteiramente gerada por software ou se ele apenas premiu o botão “mais sincero” antes de a enviar?

Por outras palavras, esses recursos resolvem um conjunto de problemas correndo o risco de criar outros. Por exemplo, em empresas já sobrecarregadas por comunicação e processos ineficientes, é fácil ver como reduzir o custo na criação de conteú­dos pode produzir consequências estranhas e externalidades. O João consegue agora enviar quatro vezes mais e-mails do que no passado. Será que tem quatro vezes mais a dizer?

No entanto, não se preocupe. A Google também tem ferramentas de IA para lidar com isso: ferramentas para resumir e-mails e textos longos, ferramentas para resumir conteúdos e ferramentas para consumir e filtrar as enormes quantidades de material gerado no mundo, por pessoas ou talvez por máquinas, e sintetizá-lo em algo útil, prático ou apenas legível.

No contexto do Gmail e de documentos colaborativos, vemos sugestões de processos de automação em guerra uns com os outros, alimentando problemas que devem ser resolvidos com mais automação, à medida que a Google cria a procura pelos seus próprios produtos que podem solucionar esses problemas. É uma corrida às armas em todas as caixas de entrada! É a hiperinflação textual em todos os escritórios! São centenas de reuniões por dia agendadas, assistidas e resumidas por bots! Antes de a Google produzir esta visão, Sam Altman, da OpenAI, brincou sobre como os utilizadores do ChatGPT o descobriram sozinhos.

À medida que esses recursos são lançados, a Google e os clientes da Google irão começar a descobrir como as pessoas realmente os usam e quais funcionam. O resultado mais provável é que tais ferramentas irão revelar e exagerar a dinâmica que existe nas empresas, reduzindo o valor institucional de certas tarefas (fazer uma apresentação a que ninguém vai prestar atenção) e enfatizando o valor de outras (pensar em assuntos sobre os quais vale a pena fazer uma apresentação). Não há necessidade — ou, antes, não há tempo — para apostar tudo. A Google, seguindo o exemplo do OpenAI, está a lançar tudo isto no imediato. Vamos ver o que acontece.

Este não é um território inteiramente novo. A comunicação nas redes sociais já é substancialmente mediada pela IA, e o seu exemplo (plataformas que abordam o seu próprio conteúdo com feeds algorítmicos alimentados por IA) contém algumas sugestões sobre como isto pode acontecer noutros locais ou, pelo menos, como poderá ser. Muitos serviços de e-mail já tentam priorizar mensagens consideradas urgentes ou relevantes. Não é difícil imaginar que uma caixa de entrada ordenada possa ser substituída por um resumo escrito ou prever como tal mudança pode afetar a forma como as pessoas escrevem os seus e-mails, para serem, primeiramente, consumidos pela máquina que está entre os utilizadores e o seu público.

Durante anos, tensões semelhantes definiram os produtos principais da Google. Nas últimas duas décadas, os sites têm acomodado as necessidades dos algoritmos de indexação e classificação automatizados da Google. Alguns seguindo as suas diretrizes no processo para produzir o melhor e mais relevante conteúdo possível e outros simplesmente inundando a internet com conteúdos semelhantes para conseguir algum tráfego de pesquisa. Um grande número — incluindo basicamente todos os principais editores e sites de comércio eletrónico — trabalha algures entre a letra e o espírito da lei da Google. Durante anos, os utilizadores do Gmail assistiram a uma dinâmica parecida nas suas caixas de entrada, à medida que spam e marketing consideravelmente automatizado, e cada vez mais convincente, é bloqueado ou gerido pela automação correspondente do lado da Google na forma de filtros e ferramentas de classificação da caixa de entrada. (Quanto ao significado dessa longa batalha ou dança tecnológica para a utilidade e função do e-mail e para a experiência de nos comunicarmos uns com os outros através do computador, deixo ao critério do leitor. Não é uma história simples! E, pelos vistos, ainda não acabou.)

Estamos a atravessar um período de entusiasmo em torno da IA, à medida que os utilizadores encontram tecnologias genuinamente estimulantes, cada uma delas com novas possibilidades e promessas: tornar o trabalho mais fácil ou mais produtivo, dar-lhe uma vantagem, ficando tudo o resto igual. Os nossos encontros com máquinas antropomórficas enfatizam a experiência privada e um sentimento de propriedade enquanto conversam connosco e respondem a comandos diretos. Estas são, na sua maioria, ferramentas em modo de demonstração, pré-implantação e pré-monetização, muitas vezes oferecidas gratuitamente, com prejuízo, de forma dissimulada, destinadas a inspirar admiração e encantamento. Isso é ótimo, mas é, em última análise, marketing enganador. Tudo o resto não fica igual. Todos os outros vão também estar a usar essas ferramentas.

Aqui, a Google fez-nos um favor, dando-nos um vislumbre do que pode vir quando o entusias­mo morrer: uma atualização concertada ou pelo menos uma mudança para a maquinaria produtiva com a qual milhões de pessoas interagem todos os dias. Uma mudança de cima para baixo no modo como trabalhamos, executada num pacote de software de cada vez. Um e-mail de agradecimento de um gestor que já não precisa de si, escrito por uma máquina.

Tradução Joana Henriques. Publicado pela primeira vez na “New York Magazine” 2022 Vox Media, LLC

Expresso Revista. Semanário#2631, de 31 de março de 2023

 

 

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