HÁ DUAS IDEIAS MUITO POPULARES, HOJE: UMA É QUE AS PESSOAS TÊM O DIREITO DE NÃO SER OFENDIDAS; A OUTRA É QUE PALAVRAS SÃO EQUIVALENTES A ACÇÕES. ESTÃO AMBAS ERRADAS
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No dia 7 de Julho de 2020, a revista “Harper’s” publicou uma carta, subscrita por 153 signatários. Era uma espécie de manifesto pela liberdade de expressão que apontava Trump como uma “ameaça real à democracia” e lamentava a existência de um ambiente de intolerância e censura em ambos os lados do espectro político. A carta era assinada por gente como Noam Chomsky, Margaret Atwood, Martin Amis, John Banville, Anne Applebaum, Steven Pinker, Fareed Zakaria, Atul Gawande, J.K. Rowling e Salman Rushdie. Na altura pensei que era estranho intelectuais renomados terem-se dado ao trabalho de dizer umas coisas tão óbvias. Mas, apenas três dias depois, outra carta foi publicada criticando a primeira. Acabava dizendo que os subscritores da carta da “Harper’s” tinham somente dificuldade de “lidar com críticas válidas”. Que “a liberdade intelectual dos intelectuais brancos cis nunca tinha sido ameaçada”. E que “eles nunca tinham enfrentado consequências sérias — apenas desconforto momentâneo”. Nos dois anos que se seguiram, entre outras ocorrências, um homem foi agredido por dizer uma piada no palco dos Óscares, outro foi agredido por um atacante armado quando fazia stand-up comedy no palco do Hollywood Bowl, e Salman Rushdie foi esfaqueado 17 vezes — e lida agora com o desconforto momentâneo de ter ficado cego de um olho e sem o uso de uma das mãos. Parece claro que os signatários da primeira carta, muitos dos quais não eram brancos nem do sexo masculino, tinham percebido qualquer coisa.
Quando Rushdie escreveu os “Versículos Satânicos” e o aiatola decretou a fatwa, várias pessoas no Ocidente acharam que deviam tomar uma posição forte sobre aquela atitude inadmissível. Refiro-me à atitude de Rushdie. Escrever um livro tinha sido, evidentemente, um grande desaforo. Uma dessas pessoas foi Roald Dahl, que achou o livro “sensacionalista” e chamou a Rushdie um “oportunista perigoso”. Esta semana, Rushdie saiu em defesa de Dahl, dizendo que as suas obras estão a ser vítimas de “censura absurda”. Não aprende, este palerma.
Há duas ideias muito populares, hoje: uma é que as pessoas têm o direito de não ser ofendidas; a outra é que palavras são equivalentes a ações. Estão ambas erradas. Se as pessoas tivessem o direito de não ser ofendidas, a vida seria impossível. Tudo tem potencial para ofender alguém — e ficar calado não é solução, porque como sabemos há silêncios que também ofendem. E, assim como uma imagem não é a realidade, também as palavras não são ações, e é por isso que não é fácil ganhar uma luta articulando o verbo “lutar”. É importante não esquecer que quando alguém diz que as palavras são como punhais está a usar uma figura de estilo. As palavras que Rushdie escreveu nos “Versículos Satânicos” são palavras. O punhal que o cegou é que é um punhal.
Ricardo de Araújo Pereira. "Estranho Ofício", in Expresso Revista, Semanário#2626, 24 de fevereiro de 2023
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