quarta-feira, 15 de março de 2023

Corrigir até que o lápis azul me doa

 




JOÃO FAZENDA



HÁ DUAS IDEIAS MUITO POPULARES, HOJE: UMA É QUE AS PESSOAS TÊM O DIREITO DE NÃO SER OFENDIDAS; A OUTRA É QUE PALAVRAS SÃO EQUIVALENTES A ACÇÕES. ESTÃO AMBAS ERRADAS

F


inalmente, podemos todos dormir mais descansados. Os livros infanto-juvenis de Roald Dahl estão a ser corrigidos por pessoas muito boazinhas para que eles deixem de ser um perigo para as nossas crianças e para a sociedade em geral. A editora das obras, os herdeiros do autor e uma instituição chamada Inclusive Minds trabalharam afincadamente para que os livros passassem de arte degenerada a arte regenerada. A Inclusive Minds descreve-se como “um coletivo de pessoas apaixonadas pela inclusão e a acessibilidade na literatura infantil” — uma paixão mesmo muito específica. Como é próprio de pessoas muito boazinhas, elas cortaram o que o autor, estupidamente, escreveu nos livros, e substituíram as palavras pecaminosas por aquelas que Roald Dahl teria escrito, se tivesse conseguido ser tão bonzinho como os seus virtuosos revisores. As centenas de correções efetuadas incluem, por exemplo, a retirada da palavra “gordo” da descrição malvada de uma personagem. Augustus Gloop, de “Charlie and the Chocolate Factory”, para alívio de todos, passou a ser “enorme” — pelo menos até à próxima correção. A Srª. Twitt, do livro “The Twitts”, deixou de ser “feia”, e é agora “muito desagradável”. Embora devamos celebrar o facto de vivermos num tempo em que personagens imaginárias não podem ser gordas e feias, creio que poderíamos evoluir ainda mais. Talvez num futuro próximo não se admita que estas figuras sejam enormes e desagradáveis. Deixem-me sonhar. No livro “The Witches”, Roald Dahl teve o topete de escrever que as bruxas usavam perucas porque eram carecas. A seguir a essa explicação aparece agora a frase salvadora: “Há muitas outras razões para que mulheres usem perucas, e não há certamente nada de errado nisso.” Ufa! Em “Fantastic Mr. Fox”, os terríveis tratores pretos, que eram monstros assassinos de aspeto brutal, são agora apenas monstros assassinos de aspeto brutal. Deixaram de ser pretos. Talvez aquela marca de tratores tenha deixado de os fabricar nessa cor. Já não era sem tempo.

No dia 7 de Julho de 2020, a revista “Harper’s” publicou uma carta, subscrita por 153 signatários. Era uma espécie de manifesto pela liberdade de expressão que apontava Trump como uma “ameaça real à democracia” e lamentava a existência de um ambiente de intolerância e censura em ambos os lados do espectro político. A carta era assinada por gente como Noam Chomsky, Margaret Atwood, Martin Amis, John Banville, Anne Applebaum, Steven Pinker, Fareed Zakaria, Atul Gawande, J.K. Rowling e Salman Rushdie. Na altura pensei que era estranho intelectuais renomados terem-se dado ao trabalho de dizer umas coisas tão óbvias. Mas, apenas três dias depois, outra carta foi publicada criticando a primeira. Acabava dizendo que os subscritores da carta da “Harper’s” tinham somente dificuldade de “lidar com críticas válidas”. Que “a liberdade intelectual dos intelectuais brancos cis nunca tinha sido ameaçada”. E que “eles nunca tinham enfrentado consequências sérias — apenas desconforto momentâneo”. Nos dois anos que se seguiram, entre outras ocorrências, um homem foi agredido por dizer uma piada no palco dos Óscares, outro foi agredido por um atacante armado quando fazia stand-up comedy no palco do Hollywood Bowl, e Salman Rushdie foi esfaqueado 17 vezes — e lida agora com o desconforto momentâneo de ter ficado cego de um olho e sem o uso de uma das mãos. Parece claro que os signatários da primeira carta, muitos dos quais não eram brancos nem do sexo masculino, tinham percebido qualquer coisa.

Quando Rushdie escreveu os “Versículos Satânicos” e o aiatola decretou a fatwa, várias pessoas no Ocidente acharam que deviam tomar uma posição forte sobre aquela atitude inadmissível. Refiro-me à atitude de Rushdie. Escrever um livro tinha sido, evidentemente, um grande desaforo. Uma dessas pessoas foi Roald Dahl, que achou o livro “sensacionalista” e chamou a Rushdie um “oportunista perigoso”. Esta semana, Rushdie saiu em defesa de Dahl, dizendo que as suas obras estão a ser vítimas de “censura absurda”. Não aprende, este palerma.

Há duas ideias muito populares, hoje: uma é que as pessoas têm o direito de não ser ofendidas; a outra é que palavras são equivalentes a ações. Estão ambas erradas. Se as pessoas tivessem o direito de não ser ofendidas, a vida seria impossível. Tudo tem potencial para ofender alguém — e ficar calado não é solução, porque como sabemos há silêncios que também ofendem. E, assim como uma imagem não é a realidade, também as palavras não são ações, e é por isso que não é fácil ganhar uma luta articulando o verbo “lutar”. É importante não esquecer que quando alguém diz que as palavras são como punhais está a usar uma figura de estilo. As palavras que Rushdie escreveu nos “Versículos Satânicos” são palavras. O punhal que o cegou é que é um punhal.

Ricardo de Araújo Pereira. "Estranho Ofício", in Expresso Revista, Semanário#2626, 24 de fevereiro de 2023


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