Q
Manet tinha pintado duas mulheres, uma despida e que olha confiantemente para nós, outra, mais longe, em vestes transparentes (a primeira era a sua modelo preferida, a outra veio a casar-se com o escritor Émile Zola), ao lado de dois homens irrepreensivelmente de fato completo, sentados num piquenique no campo. O contraste entre elas e eles é realçado pela voluptuosidade tranquila da mulher que nos fita e que é iluminada pelo jogo de cores do quadro. Curiosamente, nem a versão divertida e posterior de Cézanne (que incluiu mais figuras, todas enroupadas), nem as de Picasso (que pintou duas centenas de esboços a partir deste quadro, quarenta dessas telas entre 1959 e 1962, incluindo algumas em que todas as figuras estão nuas) transmitem a mesma sugestão. Melhor do que os seus imitadores, a imagem da Manet sublinhava a luminosidade e a natural sensualidade da mulher que domina o quadro. Por isso, ou dado que a censura não anda com bom nome — pelo menos numa pequena parte do mundo, mais pequena do que se pode supor —, a acusação de obscenidade de que então Manet foi vítima, como o fora Courbet, parecer-nos-á agora uma simples zombaria. Como nestes casos, a designação de obscenidade, para reduzir uma das formas de sentir o erotismo, é uma interpretação de poder e tem o contexto de cada época em que é enunciada.
Francisco Louçã. "Vai Bocage contra o fanatismo dos bonzos" (excerto), in Revista Expresso, Semanário#2627, de 3 de março de 2023
Sem comentários:
Enviar um comentário