sábado, 1 de janeiro de 2022

Do tempo sabemos uma pequena parte

 







DO TEMPO SABEMOS UMA PEQUENA PARTE E IGNORAMOS TUDO O RESTO. POR ISSO, O CONFRONTO COM O MISTÉRIO DO TEMPO NOS DEIXA SEM PALAVRAS

O




tempo não é adversário com o qual nos sintamos propriamente confortáveis no ringue, pois no fundo sabemos que ele acabará por vencer. Também nós somos feitos de tempo, somos amassados no seu barro, percebemo-nos atravessados por substratos temporais em tensão, por tempos de natureza diferente que, à sua maneira, nos mensuram, suportam e explicam. Mas nós somos um tempo específico: não somos o tempo. Somos um instante em trânsito entre passado, presente e futuro. Somos esse movimento trânsfuga, essa fulguração, essa coisa entre. O complexo fio que o tempo desdobra supera-nos, é uma realidade a perder de vista, face à qual as nossas habilidades escasseiam. Do tempo sabemos uma pequena parte e ignoramos tudo o resto. Por isso, o confronto com o mistério do tempo nos deixa sem palavras. Como agora, neste ritual de passagem que no final de cada ano cumprimos, como se rodássemos sobre nós próprios, para desembarcar, de novo, numa espécie de limiar. Mais uma vez deixámos o conhecido e debruçamo-nos sobre o inédito. Santo Agostinho, que escreveu acerca do tempo páginas justamente tidas como clássicas, dizia com incisiva ironia: “O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; porém, se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.”

Aqui estamos nós, diante do tempo, debruçados sobre esta balça ampla e enigmática, sobre este descampado que os nossos olhos fixam, gerindo expectativas e desejos em vez de certezas, reconhecendo humildemente que avançamos estrada fora munidos não de respostas, mas de um agostiniano ‘não sei’. Contudo, as surpresas da nossa relação com o tempo não terminam assim. Se o que nos resta conscientemente entre as mãos é a consideração de que não sabemos, somos chamados ainda a fazer alguma coisa com isso. O ser humano diz ‘não sei’, não como se chegasse ao fim do caminho, mas pronto a inaugurar um outro princípio.

Reli estes dias o discurso que a poeta polaca Wisława Szymborska fez na cerimónia de atribuição do Nobel, em 1996. Na altura, houve quem comentasse que era o discurso mais breve que a Academia Sueca escutou, mas isso não o torna menos relevante. Que propõe Szymborska? O elogio do ‘não sei’. É claro que tal não constitui um assunto consensual. E como que divide o mundo. Ainda bem que é assim. A poeta recorda que os ditadores, os fanáticos e os demagogos de todo o género “sabem, e o que quer que saibam é o suficiente para eles, de uma vez por todas. Não querem descobrir mais nada”. Eles desconhecem, porém, que quando o conhecimento deixa de produzir novas questões é porque se está a extinguir e se distanciou do torrencial fluxo da vida. Contrapõe a escritora: “É por isso que dou tanto valor à pequena frase ‘não sei’. É pequena, mas voa com asas poderosas. Expande a nossa vida para incluir espaços que estão dentro de nós, bem como as vastidões exteriores em que a nossa minúscula Terra pende suspensa. Se Isaac Newton nunca tivesse dito a si mesmo ‘não sei’, as maçãs do seu pequeno pomar poderiam ter caído no chão como uma chuva de granizo — no máximo, teria parado para apanhá-las e comê-las com deleite.” Ou, a também polaca, Marie Curie teria sido provavelmente professora de química em algum colégio de elite, mas não a extraordinária cientista em que se tornou. O ‘não sei’ é o modo com que as vidas fecundas plasmam o tempo que lhes coube.

Entre os propósitos para o ano que começa coloquemos a coragem de dizer ‘não sei’. Trata-se, porventura, de uma ferramenta desconcertante, mas também das mais criativas para enfrentar o tempo.

José Tolentino Mendonça. "O caminho do não sei" - Que coisa são as nuvens, in E-Revista Expresso, Semanário#2566, 30 de dezembro de 2021


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