domingo, 15 de novembro de 2020

Crónica | A morte do assobio, de Luís Pedro Nunes









ESTAMOS TÃO CENTRADOS NAS GRANDES MUDANÇAS QUE PODEMOS NÃO PERCEBER AS PEQUENAS COISAS QUE O VÍRUS NOS ESTÁ A TIRAR


 


O




telemóvel faz coisas que não peço. Como estar diariamente a recordar-me de fotos. Ainda na semana passada escolheu uma imagem banal, de um momento quotidiano, que me parecia ter anos, roubada a outro tempo. Tão distante tudo aquilo me parecia. Era de fevereiro. Fiquei espantado. Andamos aqui tão preocupados em nos adaptar ao ‘novo normal’ da pandemia que ainda não percebemos o que mudámos e o que mudou à nossa volta. Há dias, numa manhã de outono fria, lembrei-me de que era por aquela hora que costumava ouvir cedo pela janela onde trabalho e espreito a cidade um assobio descontraído a caminhar pela rua. Já não.

O assobiar sempre me intrigou. E era coisa sobre a qual já tinha pensado. Na atualidade, enquanto ato público, encontrava-o em duas situações. Pela manhã, um assobio satisfeito, rouxinol matinal, antes de ir para o trabalho, e que mais do que “felicidade pobrezinha” parecia antes uma forma para abstrair de pensamentos — “quem assobia seus males espanta” — de pessoas com ofícios manuais (obras e afins). E o assobio de chuveiro de ginásio, esse sim de felicidade pós-treino, quando há aquela tal libertação de endorfinas e mais não sei quê. Um balneário de ginásio era um recanto muito assobiador. Acho que “o assobio alarve” já caiu em desuso e para chamar táxis também. Aliás, o assobio associou-se a uma certa falta de urbanidade. E, por questões culturais, sempre algo do domínio do masculino.

Vá-se procurar informação sobre “porque é que os humanos assobiam” e, mais do que ligar a uma forma de comunicação, remetem logo para a música e para a criação e reprodução desta. E alertam para o extraordinário facto de podermos não saber uma nota musical, cantar horrivelmente, mas o cérebro sabe dar ordens para controlar o ar, os pulmões e o seu fluxo de modo a que consigamos reproduzir um hit musical acabado de ouvir. Hoje, poucos sabem assobiar com os dedos, mas também porque as crianças não têm quem as ensine, é um ‘dom’ que não serve para nada de ajuizado.

O assobio foi sempre uma linguagem. Basta ver a utilização do assobio como meio de comunicação nos pastores, mas também em certas comunidades de montanha que desenvolveram uma linguagem de assobio para conversar a quilómetros de distância aproveitando o eco dos vales. A mais conhecida é a das Canárias, mas já vi um documentário com outra na Turquia. E as mulheres são exímias. Os telemóveis já a estavam a extinguir e duvido que usem máscara anticovid de tão isoladas que estão.

Falo das pequenas mudanças. Não ouvi o assobiador. Duvido que este ano ouça o amolador com a flauta de Pã que já devia ter passado. Dir-se-á que o estranho era ainda haver isso no centro da cidade. Mas a pandemia está a mudar tantas grandes coisas que não notamos as pequenas. E se notamos há logo quem diga: “E isso que interessa?”

O meu médico, como o de todos, diz-me para caminhar, dado estar tanto tempo em casa (não basta fazer exercício ‘normal’). E todos os médicos estão a dizer isso a todas as pessoas. O que faz com que multidões vão caminhar com o único objetivo de caminhar e acabe a fazê-lo nos mesmo locais (beira-rio, parques, jardins) onde em duplas ou sós avançam com grande determinação para lado nenhum que não gastar o tempo ou a distância pré-planeada. Algumas, muitas, levam phones com música ou podcasts, o que as retira sensorialmente do lugar em que estão. A caminhada, no meu dicionário mental, era suposto ser um deambular. Um ir sem se saber para onde. Em 2008, já se escrevia um livrinho sobre “A Arte de Caminhar” em que se falava sobre a natureza filosófica e transcendental desse ato, uma forma de paulatinamente se atingir um estado alterado de consciência — acredito que os peregrinos a Fátima aceitem isso. Mas havia aqui uma necessidade de absorver o meio. De observar. Estamos no campo da estranha ‘inglesidade’ do século XIX mas também na especificidade nórdica que agora nos fascina. Os noruegueses terão 50 palavras para outros tantos tipos de caminhar. Não sei se é verdade. Vem-me agora à memória que os tuaregues terão não sei quantas dezenas de palavras para tipos de areia e os esquimós outras tantas para tipos de neve. Os noruegueses para caminhar. O que mostra a tara, perdão, o amor e dedicação à caminhada. E esse desejo por caminhar era tal que se tornou um desporto competitivo que ainda hoje sobrevive sabe-se lá como nos Jogos Olímpicos na Marcha, que é assim, digamos, algo que se tem dificuldade em compreender.

Caminhar sem destino pela cidade é hoje bizarro. Em locais ainda apinhados de gente, as pessoas, de máscara, baixam a cabeça e esforçam-se por evitar entrar no espaço das outras, num ato de suposto respeito de não as contaminar. Sair a caminhar por conta própria é transformar-se no ‘outro’. Entra-se num bairro, que mesmo assim aparenta uma normalidade mais sossegada, e já não se é o “tipo que passeia”, o “turista de ocasião”, mas o estranho que pode estar a carregar o vírus. E assobio às botas e dou meia volta.

Dizem que tudo voltará a ser o que era. Não acredito. Pelo contrário, esforço-me por não esquecer. De manhã, às vezes, há menos de um ano, ouvia um assobiar trinado pela janela de alguém que ia para o trabalho. Parecia feliz, mas talvez fosse alguém a abstrair-se dos pensamentos do dia. Era o normal. Hoje seria o absurdo.

Luís Pedro Nunes. O mito Lógico - A morte do assobio. E-Revista Expresso, Semanário #2507, 13 de novembro de 2020. 


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