quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Artigo | Ninguém gosta de ti

 





O BULLYING EM CONTEXTO ESCOLAR TEM MERECIDO CADA VEZ MAIS ATENÇÃO A NÍVEL MUNDIAL. EM PORTUGAL, JÁ EXISTEM PLANOS EM AÇÃO PARA ELIMINAR O PROBLEMA — INCLUINDO A VIOLÊNCIA À DISTÂNCIA, POTENCIADA PELAS NOVAS TECNOLOGIAS 

Texto: Tiago Soares
Ilustração: Cristiano Salgado 



Uma jovem de 17 anos publica uma foto sua nas redes sociais. Uma hora depois, percebe que mostrou “um pouco demais.” Apaga a foto. “[Mas] entretanto já tinha recebido imensas mensagens a chamar-me nomes e a ameaçar que me iam internar [porque] eu era doente. Uns dias depois os meus pais descobriram e deram-me uma sova enorme. Não consegui dormir naquele dia. Nas semanas seguintes as mensagens continuavam a vir e na escola era perseguida e gozada. Infelizmente [isto] agravou uma depressão que eu já tinha há cerca de três anos. Fiquei muito mal. Não dormi durante dias. Tentei suicidar-me. Agora aprendi a dar a volta à situação e sou mais feliz do que era.” 

Este relato é português — faz parte de um estudo do ISCTE sobre bullying realizado durante a pandemia — mas podia ser de qualquer parte do mundo. São dados das Nações Unidas: metade dos adolescentes a nível global passa por situações de violência entre pares nas escolas ou nas suas imediações, e mais de um em cada três alunos entre os 13 e os 15 anos sofre de bullying. Em Portugal, os indicadores não são muito diferentes: o último relatório “EU Kids Online” mostra que a prevalência deste fenómeno tem aumentado desde 2010 em praticamente todas as idades. A última percentagem é de 2018: 24% dos alunos nacionais entre os 9 e os 17 anos já sofreram bullying, tanto offline, como online. As consequências são graves: “Isolamento, maior tristeza, solidão, baixa autoestima, variações de humor, sentimento de insegurança na escola”, enumera Raquel António, psicóloga e a investigadora do ISCTE responsável pelo último estudo português sobre o tema. “A longo prazo terão maior propensão para comportamentos autolesivos e depressivos, e ideação suicida”, refere. Em alguns casos, “podem tornar-se adultos com poucas ligações sociais e afetivas; agressivos e revoltados, especialmente perante situações que possam desencadear na sua memória episódios traumáticos e depressivos”, garante ao Expresso. Além disso, os próprios agressores poderão ter problemas de relacionamento afetivo e social, comportamentos de risco para a saúde (álcool, tabaco, drogas), diz a especialista. “A longo prazo terão maior probabilidade de se envolverem em comportamentos violentos e em atos de criminalidade, maior risco de perturbação antissocial da personalidade na idade adulta e dificuldades em ter emprego estável.” 


MÉTODOS DE PREVENÇÃO 

Por cá, tanto a sociedade civil como o Estado têm vindo a aprofundar o tema nos últimos anos. No início do ano, a Associação Plano i criou o Observatório Nacional do Bullying, em simultâneo com um “Plano B — Programa de Prevenção de Bullying”. O objetivo passa por “mapear o fenómeno em todo o território português”, diz ao Expresso Ana Luísa Abreu, coordenadora da iniciativa, que começou nas regiões norte e centro, com alunos dos 2º e 3º ciclos, num total de 40 turmas. A responsável faz uma boa avaliação das sessões pré-confinamento. “O projeto teve uma influência positiva na disseminação de informação, na desconstrução de mitos associados às motivações que levam os jovens a praticar bullying (discriminação com base na etnia, homofobia, transfobia), e na sensibilização para os impactos do bullying em todos os intervenientes.”

Os dados recolhidos até agora mostram que o tipo de violência mais frequente é a psicológica/verbal, seguida da física. Contudo, Ana Luísa Abreu pede uma “análise cautelosa” destes indicadores, dado que “a tipologia social (lançar rumores sobre a vítima, por exemplo) é a mais difícil de identificar.” Ainda no ano passado, o Governo deu início ao “Plano de Prevenção e Combate ao Bullying e ao Ciberbullying: Escola Sem Bullying. Escola Sem Violência”, cuja implementação nas escolas começou no último ano letivo. Raquel António lembra que o último ano letivo foi “atípico”, saúda a iniciativa da tutela, reconhece crescente interesse da sociedade no tema e diz que Portugal “está no bom caminho”. Mas avisa: ainda “não existem dados anuais”, e todas as boas iniciativas atualmente em vigor “dependem sempre da denúncia por parte dos próprios envolvidos ou da escola” — o que pode dificultar o acesso aos números reais do problema em Portugal. 

Uma das iniciativas do Ministério da Educação foi a criação do selo “Escola Sem Bullying, Escola Sem Violência”, um prémio para as escolas do país que melhor lidam com esta realidade. Há duas semanas foram certificadas as primeiras 52 escolas, e o agrupamento de Escolas de Atouguia da Baleia, em Peniche, foi uma delas. O truque é “não atuar na indisciplina, mas sim na prevenção”, garante a diretora Sara Guardado da Silva. “Há uns anos este era um meio mais fechado, mas a zona tornou-se apelativa do ponto de vista habitacional e começámos a receber meninos de outras escolas, com culturas e hábitos distintos. Começámos a prevenir o desenvolvimento de situações de violência através de equipas multidisciplinares de apoio à inclusão em todos os ciclos do agrupamento, em articulação com o gabinete de psicologia da escola”, explica. 

O plano nacional visa juntar toda a comunidade escolar na prevenção, identificação, intervenção e combate da violência. Porém, não envolve os próprios alunos na resolução dos casos. É justamente neste princípio que assenta o método da associação No Bully Portugal: em poucas sessões, envolver a vítima e o agressor na resolução do conflito através da empatia e colaboração. “Há 18 anos que este processo é implementado a nível internacional”, explica ao Expresso Inês Andrade, presidente da associação. 

Nos Estados Unidos da América, o método foi usado em pelo menos 300 casos de bullying, com uma taxa de sucesso de 87%. Para já, a No Bully está a trabalhar apenas com nove escolas portuguesas, mas o feedback das direções tem sido “muito positivo.” Mesmo com todas as estratégias do mundo, a escola não consegue combater o bullying sozinha. “Acredito que os pais e encarregados de educação já tenham acesso a mais informação, mas não estou certa de que com isso façam mais trabalho preventivo em casa”, aponta Raquel António. “Apesar do aumento das campanhas de sensibilização, a popularização do tema poderá gastar o assunto. Além disso, acredito que os pais atribuam muito este dever de prevenção à escola, por ser muitas vezes o local onde estas situações acontecem — desvalorizando o papel fundamental de prevenção que os próprios têm (ou deveriam ter) em casa.” As estratégias de prevenção são simples, diz a investigadora. Mesmo tendo pouco tempo para estar com os filhos, “os pais devem falar com a criança ou adolescente para perceber como se sente na escola, como correu o dia, se existe alguém que o trata mal, com quem fica no intervalo.” Ou seja, pequenas perguntas no dia a dia que reforcem a confiança do jovem para que peça ajuda caso pressinta algum problema. E é crucial “transmitir a importância de valores como a gentileza, a empatia, a tolerância, a responsabilidade, o respeito com que todos têm o direito de ser tratados”, realça Raquel António. 


CYBERBULLYING E BULLYING PANDÉMICO 

“Tenho uma história. Conheço uma rapariga que é perseguida e maltratada há anos. Criaram uma conta para expor fotos, conversas, ofendê-la... Eu e mais umas amigas tivemos de fingir que mandamos um e-mail à Polícia Judiciária para eles ficarem com medo e apagarem a conta. Tenho medo que situações assim levem adolescentes ao suicídio”, desabafa uma jovem de 16 anos. Insultar e agredir à distância é mais fácil para quem o faz, e pode ser mais difícil para a vítima: eis o cyberbullying. “O efeito multiplicador das tecnologias de comunicação e das redes sociais possibilita chegar a um maior número de pessoas (testemunhas ou observadores online), prejudicando muito rapidamente o alvo destas mensagens caluniosas, imagens e vídeos ofensivos e humilhantes”, aponta Raquel António. 

A internet não esquece, a difusão do conteúdo torna-se imparável, o ato torna-se “ainda mais difícil de controlar, combater ou de esquecer.” “As crianças e jovens devem pensar muito bem antes de partilhar ou enviar uma imagem ou vídeo a quem quer que seja e que possa usar essa imagem ou vídeo para humilhá-la ou chantageá-la”, alerta a especialista. E reforça o papel que encarregados de educação e restantes cuidadores devem ter, consciencializando os mais novos para os riscos da tecnologia. 

O já referido estudo do ISCTE sobre bullying durante a pandemia foi realizado entre junho e julho, depois do pós-confinamento obrigatório. Nesse período, quase 60% dos estudantes consideraram que existiu um aumento do conteúdo violento e prejudicial online durante o ensino à distância. Além disso, 61% dos participantes revelaram ter sido vítimas de cyberbullying nos últimos três meses (março-maio). “Se antes da pandemia o acesso excessivo à internet já estava relacionado com a prevalência do cyberbullying, caso passemos por uma nova fase de isolamento, o fenómeno pode intensificar-se mais”, diz Raquel António. Do lado dos agressores, 41% dos inquiridos admitiram ter agredido um colega através da internet, e 29,4% mostraram-se indiferentes perante o sucedido: o sentimento de culpa atingiu apenas 16% dos alunos. Um novo ano já começou. “Acreditamos que a intervenção poderá ser dificultada pelas medidas implementadas. Algumas situações externas a esta temática poderão passar despercebidas”, reconhece Ana Luísa Abreu. No entanto, a coordenadora do Plano B assegura que é “necessário continuar a intervir”. Sara Guardado da Silva assegura que essa intervenção vai continuar a existir na escola que dirige, e promete usar as novas tecnologias para o bem: “Vamos continuar a usar as plataformas digitais para interagir enquanto escola, promover a comunicação entre alunos de anos diferentes, e assegurar os planos de mentoria já em vigor.” 

Em tempos digitais e pandémicos, um jovem de 17 anos — aluno do 12º ano — oferece uma solução simples para acabar com o bullying: pensar antes de fazer. “Tenho uma aplicação em que desabafo de forma anónima. É raro acontecer, mas um dia fi-lo e alguém mandou mensagem a dizer para me matar... Por acaso não tenho tendências suicidas nem uma doença que me afete psicologicamente, mas e se tivesse? As pessoas não têm noção do que dizem na internet, não sabem como será a interpretação da pessoa que está do outro lado. Se há coisa que deviam ensinar na escola é como devemos tratar os outros de forma a vivermos em paz na sociedade sem prejudicarmos ninguém...” 

METADE DOS ADOLESCENTES A NÍVEL GLOBAL PASSA POR SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA ENTRE PARES NAS ESCOLAS OU NAS SUAS IMEDIAÇÕES, E MAIS DE UM EM CADA TRÊS ALUNOS ENTRE OS 13 E OS 15 ANOS SOFRE DE BULLYING.    AINDA NO ANO PASSADO, O GOVERNO DEU INÍCIO AO “PLANO DE PREVENÇÃO E COMBATE AO BULLYING E AO CIBERBULLYING: ESCOLA SEM BULLYING. ESCOLA SEM VIOLÊNCIA”, CUJA IMPLEMENTAÇÃO NAS ESCOLAS COMEÇOU NO ÚLTIMO ANO LETIVO.
    

Fonte: Expresso, Semanário #2505, 31 de outubro de 2020

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