domingo, 7 de junho de 2020

O tempo deixou de ser neutro, até os minutos tomam posição


Diário da Peste
Gonçalo M. Tavares



Paris, Museu, Orsay, Relógio, Mulheres, Pessoas
Imagem: Pixabay


O “artista não faz curva para agradar você”, Jhon, o cantor brasileiro. 
Efemeróptero é um insecto, vejo agora.
Pode viver algum tempo dentro do casulo, enquanto em formação. Mas depois fica adulto e morre passado um dia. 
The New York Times, instruções. Como abraçar numa epidemia. Nunca abraçar cara a cara. 
Belos desenhos, ilustrativos. Como para crianças. 
Temos todos seis anos e precisamos de ver para saber. 
Aprendemos com desenhos, não com o abstracto.
Um-brasileiro-por-minuto. Hashtag que lembra o número de mortos por covid no Brasil. 
Cronómetros agora assinalam doença ou movimento político.
O tempo deixou de ser neutro, até os minutos tomam posição.
Um minuto conservador, um minuto liberal, dois minutos radicais.
Oito minutos e pouco de joelho, mãos no bolso e olhar lunático.
Palácio de Versalhes reabriu neste sábado, mas só para franceses. 
Uma festa de casamento levou a novo surto de Covid-19 no Irão.
Abriu a época balnear: “Assim, tão afastados uns dos outros, temos de comunicar por megafone”, diz alguém.
Na Holanda, as martas não provaram a sua inocência. Vão ser abatidas.
Existe argumentação nos animais, mas não é verbal.
Discotecas reabrem em Espanha, mas não se pode dançar.
A biologia defende-se como pode, mas nunca está inocente.
Daí talvez a causa da morte. Nos animais e nos homens.
Milhares de pessoas manifestam-se em todo o mundo contra o racismo.
Instruções. Uma criança pode abraçar a cintura dos avós.
Uma avó pode beijar a nuca do neto. A diferença de alturas facilita.
Desenhos, The New York Times. Todos com máscara.
Dois adultos abraçados com cara virada para o mesmo lado: sinal vermelho.
Dois adultos podem abraçar-se se virarem a cara em direcções opostas.
Um vira a cara para o Sul, o outro para o Norte.
Só assim se podem abraçar e permanecer saudáveis.
Substituir o nome mortais por efémeros.
Talvez também apenas fiques adulto por um dia. Como os tais insectos.
O adulto é aquele que percebe e depois morre.
Peter Pál Pelbart (PPP), performance filosófica a partir de Deleuze e Guattari. Palestra aos porcos (onze filhotes).
Filosofia para suínos, como PPP diz.
Deleuze: um escritor dirige-se sempre ao animal que existe dentro do homem.
Imaginar o contrário: o filósofo dirige-se à parte humana que existe no animal.
Imagino isto: o sítio para onde viras o pensamento tem tanta influência como o sítio para onde viras a tua respiração.
Em dias de contágio. É possível o abraço se duas pessoas estiverem a pensar em coisas diferentes.
Fronteiras ainda fechadas. Bebés já adoptados esperam futuros pais do outro lado da linha.
Só o verbo convence quem só se convence pelos ouvidos.
Separados desde março de 2020 amantes, avós e netos.
Junho de 2020: evidentes dificuldades técnicas nos abraços.
Não há desenho que resolva,
Amsterdão vai abrir, excepto o bairro vermelho.
As trabalhadoras sexuais “têm de esperar até Setembro; centenas podem ser atiradas para a pobreza.”
Poema, “O Imperdoável” de Holderlin.
Podes troçar de tudo: dos artistas e da inteligência
“mas não perturbeis
Nunca a paz dos que se amam.”
Uma falha entre as falhas. 

Gonçalo M. Tavares, Diário da Peste, Expresso, 7 de junho de 2020


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