sábado, 27 de junho de 2020

A cada livro o seu leitor






O balcão de referência é, sem dúvida, o lugar mais importante da biblioteca. Em vez de receber o leitor como um importuno que vem perturbar o seu sossego, o bibliotecário deve estar tanto mais alegre quanto mais cheia de leitores estiver a biblioteca.

Uma perplexidade, entretanto, sempre o assalta e ninguém a exprimiu melhor do que Ortega y Gasset quando exclamou: “Hay ya demasiados libros”. A consciência desse problema — “el libro como conflicto” — deve levar-nos a evitar o isolacionismo, colaborando com os outros bibliotecários e contribuindo, assim, para a formação de uma rede ou sistema de bibliotecas.

As normas de catalogação e os sistemas de classificação bibliográfica são necessários, mas devem estar ao serviço dos leitores — e não dos bibliotecários que, em muitos casos, deles se utilizam exatamente pour épater le lecieur — como os sábados a que se referia Jesus Cristo em conhecida parábola.

A biblioteca não é o “hospital de almas” da frase acaciana. Se ela faz alguma coisa pelas almas será antes saculejá-las em vez de hospitalizá-las. De alguns livros sabemos que contribuem em menos para salvar do que para perder as almas. Foi lendo livros de cavalaria que Dom Quixote enlouqueceu. Depois de ler o romance Fabrizzio Luppo, um jovem mexicano suicidou-se, deixando carta dramática para o autor, Carlo Coccioli, que desde então passou a residir no México, onde escreveu, entre outros inúmeros livros, Un Suicide. Antes, aliás, desse episódio que poucos conhecem, houve a famosa cadeia de suicídios provocada, na Europa, pelo Werther, de Goethe. Na biblioteca particular de um dos Inconfidentes mineiros — o cónego Luís Vieira da Silva — encontraram os sequestradores de seus bens 270 obras em cerca de oitocentos volumes, segundo os Autos da Devassa da Inconfidência Mineira. Uma dessas obras era, nada mais nada menos do que a famosa Encyclopédie organizada por Diderot e D’Alembert, obra que pelo seu caráter subversivo impedia qualquer biblioteca de ser ou considerar-se “hospital de almas”. Sobre o assunto, como se sabe, Eduardo Frieiro escreveu excelente ensaio bibliográfico.

Nos chamados beaux vieux temps, o livro podia ser considerado como “amigo silencioso que não falha”. Hoje, não! Com a explosão bibliográfica ele transformou-se num quase inimigo, como salientou Ortega ao escrever que o bibliotecário atual “habrará de ejercer la policia sobre el livro y hacerse domador del libro enfurecido”.

Ao contrário do bibliotecário da antiguidade — que precisava mais conservar que difundir o livro, por ser este um objeto raro — o bibliotecário moderno preocupa-se mais com o leitor, seja qual for a sua idade, nível cultural ou condição social.

A paráfrase termina aludindo a duas das conhecidas Five laws of library science, estabelecidas pelo bibliotecário indiano S. R. Ranganathan: “Every reader his book” e “Every book its reader”. Aparentemente, na distinção entre estas duas leis existe apenas um trocadilho. Na realidade, porém, elas são complementares.

Quando afirmamos que para cada leitor deve existir um livro, colocamos — como explica Ranganathan — um problema nacional, que é o da responsabilidade que têm os governos de favorecerem a leitura para todo o povo e não apenas para uma elite. Disse Anísio Teixeira, no título de um de seus livros, que Educação não é privilégio. Nem educação nem biblioteca, digamos completando o saudoso educador, que sabia muito bem não ser possível a existência de uma coisa sem a outra.

Ao estabelecer “every book its reader”, Ranganathan tinha em vista a indispensável adequação de cada livro aos diferentes géneros de leitores: diferenças etárias, psíquicas e éticas. Censuras de ordem religiosa ou ideológica não são admissíveis; mas pelo próprio facto de que nem todo livro é “o amigo silencioso que não falha” e de que as bibliotecas não são “hospitais de almas”, há que restringir-se a leitura de certos livros de acordo com a idade, a psicologia e a formação de cada leitor.

Fonte:
Moreno Barros. Paráfrase de Carlos Drummond de Andrade. Blogue Bibliotecário sem fronteiras, 19.06.2020


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