Por Bernardo Oliveira
Deslocar-me da zona onde habito até à aldeia dos meus avós é para mim uma viagem dentro da viagem. O percurso de carro demora aproximadamente uma hora e meia, e enquanto o veículo circula há espaço para os mais variados tipos de pensamento. Dá para pensar na vida. No que fiz. No que quero fazer. Na política. No futebol. Nos mínimos problemas. Nos máximos problemas. Nos problemas. Conversar com quem vai no carro. Ouvir e cantar a música que dá na rádio.
Viajar para um destino em que sabemos que vamos encontrar familiares que amamos é um hino à felicidade. Quantos de nós estamos com as pessoas que amamos apenas três ou quatro vezes por ano porque o mundo do trabalho e dos afazeres não permite um maior número de encontros? São imensos os casos por esse mundo fora. Por isso, sejamos felizes quando a viagem se proporciona, sobretudo quando acompanhados. Façamos da contagem decrescente um crescente entusiasmo até ao momento da chegada. O amor também é isto. Nos dias que antecedem a entrada no carro, houve horas seguidas de trabalho e vários problemas normais existentes no quotidiano de todos nós. Na rua, as pessoas caminham de forma agressiva para combater os segundos do relógio, inimigo de tantas almas que há muito se deixaram escravizar pelos horários rígidos. Os carros apitam na estrada e os peões carregam freneticamente no botão para que fique verde mais depressa, mesmo sabendo que o resultado dessa ação é nulo.
Esta azáfama mundana faz parte do dia a dia de muitos, e sem nos apercebermos o stress vai acumulando. Apenas 24 horas não chegam para tantas tarefas. Na televisão, os noticiários mostram os escândalos cada vez mais normais na nossa sociedade. Sentar no sofá é cada vez menos normal. Não há descanso, mesmo quando se fecha os olhos.
Após o carro ser estacionado, pisar o chão da aldeia traz-me uma sensação tão diferente quanto indescritível. De vez em quando passam tratores e pessoas que, conhecendo ou não, nos saúdam com um sorriso. O ar é limpo. Há muitas árvores atrás da casa dos meus avós e o verde é a cor mais comum em qualquer paisagem.
Em casa não há internet, e a televisão apresenta apenas os canais generalistas, para além do tamanho do televisor ser extraordinariamente pequeno. O meu avô diz que chega perfeitamente, mas julgo que nem ele acredita no que diz. Deste modo, não há outra maneira de passar o tempo a não ser conversar. Há muitas pessoas que já nem sabem o que isso é, e é por isso que é tão bom poder lá estar. Conversa-se de tudo e com prazer.
Quando alguém lá vai a casa, a humildade impera. Ali os problemas debatidos em congressos internacionais não existem. Não há agitação nem gritos histéricos. Umas pessoas lamentam uma má colheita. Outras falam do vizinho do lado que caiu e não se sabe se recupera. Discute-se a construção de um lar em terreno próximo. De vez em quando alguém bate à porta depois de sair da missa.
Quando joga o meu clube, desloco-me a um café perto dali. Felizmente, as pessoas são as mesmas de sempre. Uma senhora usa óculos escuros mas coloca-os sempre na ponta do nariz para poder ver melhor. Há senhores a jogar à sueca que, pela aparência que demonstram, passaram o seu dia a colocar cartas em cima da mesa, e não fosse o futebol ali continuariam. Há pessoas que se sentam e não consomem nada. Há bitaites típicos da modalidade, mas sem qualquer tipo de maldade. Aliás, maldade é coisa que ali não há. Tudo é genuíno e simples.
Ninguém ostenta aquilo que não tem. Os cumprimentos e abraços são de pessoas que realmente sentem aquilo que fazem, e isso é percetível pela forma como se olham e falam. No regresso a casa dos meus avós, tudo continua sereno. A noite desce sem sobressaltos. A lua parece feliz e tranquila, assim como eu. A maior aflição reside apenas nas melgas, que de vez em quando aparecem, mas até elas tornam o momento bonito. A noite naquela aldeia é diferente da noite de muitos de nós, porque é apenas isso: a noite. Sem ruídos de fundo, sem pessoas a caminhar fervorosamente. Sem sons de buzinas. É a noite no seu esplendor. E eu irei sempre preferir aquela noite.
Por vezes meto-me a pensar e concluo: grande parte Portugal são estas aldeias e as pessoas que lá moram. Não é só Lisboa ou Porto. A maioria do nosso país está ali e não tem apoios. Vivem apenas uns dos outros. Da amizade e camaradagem entre pessoas que crescem e vivem juntas toda uma vida. Apesar das dificuldades, continuam a visitar-se mutuamente, e os sorrisos aparecem sempre. Faz falta a muitas pessoas visitar a aldeia dos meus avós. Tenho a certeza de que, pelo menos um dia, iriam sentir a essência de viver. Espero que ainda vão a tempo.
Bernardo Oliveira Ir à aldeia, in Comunidade Cultura e Arte, 24 de outubro de 2019
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