Um artista para quem o fim principal não é a arte é uma pessoa alheada da arte e que por isso não pode realizá-la. A arte tem de ser um fim em si, a arte pela arte, não um meio ou instrumento para um fim.
Capa do nº 1 da revista «Presença» - Literatura Viva.
Uma obra de arte vale por si, assumindo fundamentos de arte “pura” (em função dos seus próprios critérios e sem precisar de validação exógena) e não de arte “para” (condicionada e ao serviço de qualquer coisa).
Um artista para quem o fim principal não é a arte é uma pessoa alheada da arte e que por isso não pode realizá-la. A arte tem de ser um fim em si, a arte pela arte, não um meio ou instrumento para um fim. Este não aceitar ao serviço de qualquer coisa, conduz-nos a perceber que a razão de ser de toda a arte é estar permanentemente a ir mais além e a vencer limites, como demanda do inacessível, do inatingível e do infinito. É uma busca incessante e permanente do que não há. Da arquitetura, cinema, escrita, escultura, música, pintura, poesia, romance e teatro que não há. Uma formulação de porquês, geradores de outros porquês, uma nova linguagem trabalhada, demandando e criando novos desígnios e fantasias, uma experimentação constante e tentativa de superar limites, à revelia e em rutura com as normas vigentes.
Num Estado democrático e de Direito a significância da arte depende essencialmente da emoção que provoca, sendo as obras de arte mais importantes que a ideologia e a teoria, inexistindo imposição oficial de apetências culturais ou gostos estéticos, acolhendo políticas de cultura plurais, sem dogmas. Daí que numa perspetiva cultural não subordinada a análises intelectuais exteriores à criação artística, se tenha como tendencioso catalogar manifestações artísticas como “conservadoras” e “revolucionárias”, dado não serem forçosamente coincidentes os critérios de mérito artístico e os de natureza política. Pode ser-se politicamente “conservador”, senão mesmo “reacionário”, e culturalmente “revolucionário”, como há quem o exemplifique com o anti-semitismo de Wagner, as afinidades pró-fascistas de vários mentores do futurismo italiano e as simpatias autoritárias de Céline e Dali, por confronto com o legado inovador, perene e vanguardista da sua música, pintura e escrita. Como se pode ser culturalmente “conservador” e politicamente “revolucionário”, sendo dado como exemplo a apologia dos cânones ideológicos dos neo-realistas e do realismo socialista, por oposição com o alegado vanguardismo revolucionário da sua mensagem, defendido por muitos, nomeadamente por grupos radicais de esquerda e de extrema-esquerda. Sendo o “reacionário”, o “revolucionário”, o “conservacionismo” e a “mudança” valores culturais de permanente compromisso e conflito, por maioria de razão se compreende que a arte é um fim em si mesmo, valendo a obra de arte por si, independentemente das opções filosóficas, ideológicas, políticas ou religiosas do seu autor, mediador, curadores de museus, galeristas e negociantes, ou da política cultural e pública seguida.
Num regime autoritário, é tarefa estadual a definição de dogmas e regras ideológicas a que artistas e arte se devem submeter, via imposição de uma arte oficial, tendo a arte como um meio ou instrumento de transformar a sociedade, tendo como fim a necessidade de construir um homem novo, como o queriam os nazis alemães e bolcheviques russos, apologistas do homem ariano e do homem proletário. A propaganda, ao serviço da nova arte, transmitia uma mensagem absoluta, válida e universal, sem críticas e inverdades, fazendo o culto da personalidade, através de uma adesão a uma ideologia e linha partidária autoritariamente estabelecida, de que são exemplos a nazificação da cultura, no regime nazi, e a planificação da cultura, na antiga União Soviética. Este propósito de transformar a sociedade, não é em si mesmo artístico ou estético, mas sim moral e político, na medida em que admitia uma ideia pré-formada da realidade, não transmitindo a realidade, mas a ideia que certos doutrinários entendiam que ela era e devia ser. A realidade era objetiva, uma só e igual para todos. Assim, para os escritores neo-realistas a literatura e a arte eram um meio ou instrumento de transformar a sociedade. Um instrumento ou um meio para um fim, que não a arte. Ao quererem comunicar a realidade e a sua transformação dialética, transmitiam a doutrina e a ideologia que certos teóricos e ideólogos tinham como realidade, transmitindo em segunda mão o que outros diziam e escreviam.
A arte, na sua essência, convida-nos a sentir uma emoção, não a concordar com uma doutrina, ideologia ou teoria. Quando consideramos a arte como um fim em si e nos emociona mais profundamente do que como um meio para fins utilitários e deterministas, temos consciência de que há nela algo de superior na sua significância e realidade última, do universal no particular, em que o Tempo fará uma destrinça entre o que resiste ao passar dos anos e o que nunca passou de efémero.
21 de abril de 2015
Joaquim Miguel De Morgado Patrício
Raís e Utopia, Blogue do Centro Nacional de Cultura
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