Entremez inserido no Auto da Lusitânia (1531)
Argumento:
Um mercador abastado, chamado "Todo o Mundo", e um homem pobre, cujo nome é "Ninguém", encontram-se e conversam sobre o que desejam neste mundo.
Entretanto, chegam dois demónios (Belzebu e Dinato) que ouvem esta conversa e, a partir dela, tecem comentários irónicos, fazem trocadilhos e colocam sob questionação temas / valores ligados com a verdade, a cobiça, a vaidade, a virtude e a honra dos homens. Acresce, ainda, que os nomes escolhidos para o mercador rico e o homem pobre permitem ao dramaturgo ampliar o alvo da sua crítica e explorar de forma irónico-lúdica o velho topos do desconcerto do mundo: Todo o Mundo é ganancioso, vaidoso, petulante sem escrúpulos (como se esta personagem representasse a generalidade das pessoas na terra, todo o mundo); Ninguém é pobre, virtuoso, honrado, modesto (ou seja, ninguém é assim no mundo...).
Representado pela primeira vez em 1532, como parte de uma peça maior, chamada Auto da Lusitânia (no século XVI, chama-se auto ao drama ou comédia teatral), este entremez* (episódio burlesco) é de autoria de Gil Vicente, considerado o criador do teatro português.
* O entremez é breve composição dramática de um só ato, de género burlesco, situado geralmente no intervalo ou no fim de uma peça de longa duração.
"entremez", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://www.priberam.com/dlpo/entremez [consultado em 26-03-2017].
Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:
Ninguém: Que andas tu aí buscando?
Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.
Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu: Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Belzebu: Que Ninguém busca consciência.
e Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém: E agora que buscas lá?
Todo o Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu: Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo
e Ninguém busca virtude.
Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse?
Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.
Belzebu: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Belzebu: Que quer em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém: Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei que é,
a morte conheço eu.
Belzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu: Muito garrida:
Todo o Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,
sem mo Ninguém estorvar.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Belzebu: Escreve
que Todo o Mundo quer paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.
Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
E Ninguém diz a verdade.
Ninguém: Que mais buscas?
Todo o Mundo: Lisonjear.
Ninguém: Eu sou todo desengano.
Belzebu: Escreve, ande lá, mano.
Dinato: Que me mandas assentar?
Belzebu: Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.
Gil Vicente, 1531. Texto representado pela primeira vez em 1532, perante a corte de D. João III (escrito para ser representado aquando do nascimento do príncipe herdeiro, D. Manuel).
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