O verbo relatar
"No verão todos somos Xerazade. Damos por nós em conversas que se espreguiçam, sem cronómetro nem pressas de ver o fim, deslumbradas pela aparente falta de propósito, por não terem requerido, como é habitual nas outras estações, um fito, um lugar e um tempo exatos. Conversas que são, na sua quase ligeireza, uma espécie de navegação sem rumo, mas onde mais depressa, e não raro de um modo surpreendente para nós próprios, nos reencontramos. Não sei se é um privilégio dos caminhos do estio, se são os seus dias mais longos e os afazeres mais breves, ou se é a limpidez da praia e a frescura resguardada da varanda que, de repente, nos permitem recontarmo-nos uns aos outros, capazes subitamente de evocações, relatos e confidências. No verão percebemos que afinal temos história e que ela se declina numa pluralidade de pequenas histórias, no entrançado de sentimentos, coisas vividas ou não, sentidas com entusiasmo ou mastigadas com mágoa, mas que se tornam inseparáveis de nós. Afinal não somos afásicos como supomos, somando experiências em vertigem mas sem nada para dizer, fugindo do assunto quando o assunto é a vida e o que a qualifica, esbarrando às cegas em vez de nos expormos ao encontro. Afinal somos capazes de presença."
José Tolentino Mendonça, "Que coisa são as nuvens - O verbo relatar". E-Expresso Revista, 13 de agosto de 2016, p. 88.
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