quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Prémio Nobel da Literatura 2014



«Melhor que um volume da Pléiade, que um lugar no Panteón, que uma mesa reservada no Flore – o que consagrou Modiano foi um neologismo que a sua obra suscitou: modianesco.»

Pierre Assouline, Le Monde


Foto de Olivier Roller


O prémio Nobel da Literatura 2014 foi atribuído ao escritor francês Patrick Modiano. 

Nascido em 1945, Modiano publicou o seu primeiro livro - La place de l' étoile - em 1968.
Para além das memórias da ocupação nazi de França na Segunda Guerra Mundial e da centralidade concedida a Paris na maioria dos seus romances, os seus temas mais recorrentes são a identidade, a memória, o esquecimento e a culpa.

Em Portugal, as suas obras foram publicadas pela Dom Quixote e pelas Edições ASA. O seu mais recente título publicado em Portugal  -  O Horizonte - tem a chancela da Porto Editora.







EXTRATO

"Nos últimos tempos, Bosmans pensava em certos episódios da sua juventude, episódios sem continuação, cortados cerce, rostos  sem nome, encontros fugazes. Tudo isto pertencia a um passado longínquo, mas como estas breves sequências não estavam ligadas ao resto da sua vida, permaneciam em suspenso, num eterno presente. Não deixaria de se interrogar sobre este assunto, e nunca obteria respostas. Excertos que, para ele, permaneceriam para sempre enigmáticos. Começara a elaborar uma lista, procurando, ainda assim, encontrar pontos de referência: uma data, um local preciso, um nome cuja ortografia lhe escapasse. Comprara um caderno preto, de capa plastificada, que guardava no bolso interior do casaco, o que lhe permitia acrescentar observações em qualquer momento do dia, sempre que uma daquelas recordações fulgurantes lhe acudia ao espírito. Tinha a impressão de se entregar a um jogo de paciência. Mas, à medida que remontava no tempo, experimentava, por vezes, algumas dúvidas: porque seguira aquele caminho e não outro? Porque deixara aquele rosto, ou aquela silhueta encimada por um curioso gorro de pele e segurando pela trela um pequeno cão, perder -se no desconhecido? Apoderava-se dele uma vertigem ao pensar no que poderia ter acontecido e não acontecera.
Estes fragmentos de recordações correspondiam aos anos em que a vida é entrecortada de encruzilhadas e se abrem tantas vias aos nossos olhos que a escolha se torna difícil. As palavras com que preenchia o caderno evocavam, para ele, o artigo respeitante à «matéria escura» que enviara para uma revista de astronomia. Por detrás dos acontecimentos precisos e dos rostos familiares, sentia  perfeitamente tudo o que se tornara matéria escura: breves encontros, reuniões falhadas, cartas perdidas, nomes e números de telefone figurando numa antiga agenda e que foram esquecidos, e aqueles e aquelas com quem nos cruzamos sem sequer nos apercebermos. Como na astronomia, esta matéria escura era mais vasta do que a parte visível da vida. Era infinita. E ele anotava no seu caderno raras e débeis centelhas vindas do fundo da escuridão. Tão débeis, as centelhas, que Bosmans fechava os olhos e se concentrava, à procura de um pormenor inovador que lhe permitisse reconstituir o conjunto, mas não havia conjunto, nada mais do que fragmentos, poeira de estrelas. Gostaria de ter mergulhado naquela matéria escura, de restabelecer um a um os fios quebrados, sim, de voltar atrás para fixar as sombras e ficar a saber mais sobre elas. Impossível. Restava, portanto, encontrar os apelidos. Ou mesmo os nomes próprios. Serviam de ímanes. Traziam à superfície impressões confusas difíceis de esclarecer. Pertenciam à fantasia ou à realidade?
Mérovée. Um nome ou um apelido? Era preferível não se concentrar muito no caso, não fosse a centelha extinguir -se definitivamente. Procedera bem ao apontar a palavra no caderno. Mérovée. Fingir que estava a pensar em outra coisa. A única maneira de a recordação se definir por si mesma, muito naturalmente, sem ser forçada. Mérovée."

(http://recursos.portoeditora.pt/recurso?id=9928590)

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