«Melhor que um volume da Pléiade, que um lugar no Panteón, que uma mesa reservada no Flore – o que consagrou Modiano foi um neologismo que a sua obra suscitou: modianesco.»
Pierre Assouline, Le Monde
Foto de Olivier Roller |
O prémio Nobel da Literatura 2014 foi atribuído ao escritor francês Patrick Modiano.
Nascido em 1945, Modiano publicou o seu primeiro livro - La place de l' étoile - em 1968.
Para além das memórias da ocupação nazi de França na Segunda Guerra Mundial e da centralidade concedida a Paris na maioria dos seus romances, os seus temas mais recorrentes são a identidade, a memória, o esquecimento e a culpa.
Em Portugal, as suas obras foram publicadas pela Dom Quixote e pelas Edições ASA. O seu mais recente título publicado em Portugal - O Horizonte - tem a chancela da Porto Editora.
EXTRATO
"Nos últimos
tempos, Bosmans pensava em certos episódios da sua juventude, episódios sem
continuação, cortados cerce, rostos sem
nome, encontros fugazes. Tudo isto pertencia a um passado longínquo, mas como
estas breves sequências não estavam ligadas ao resto da sua vida, permaneciam
em suspenso, num eterno presente. Não deixaria de se interrogar sobre este
assunto, e nunca obteria respostas. Excertos que, para ele, permaneceriam para sempre
enigmáticos. Começara a elaborar uma lista, procurando, ainda assim, encontrar
pontos de referência: uma data, um local preciso, um nome cuja ortografia lhe
escapasse. Comprara um caderno preto, de capa plastificada, que guardava no
bolso interior do casaco, o que lhe permitia acrescentar observações em
qualquer momento do dia, sempre que uma daquelas recordações fulgurantes lhe
acudia ao espírito. Tinha a impressão de se entregar a um jogo de paciência.
Mas, à medida que remontava no tempo, experimentava, por vezes, algumas
dúvidas: porque seguira aquele caminho e não outro? Porque deixara aquele
rosto, ou aquela silhueta encimada por um curioso gorro de pele e segurando
pela trela um pequeno cão, perder -se no desconhecido? Apoderava-se dele uma
vertigem ao pensar no que poderia ter acontecido e não acontecera.
Estes
fragmentos de recordações correspondiam aos anos em que a vida é entrecortada
de encruzilhadas e se abrem tantas vias aos nossos olhos que a escolha se torna
difícil. As palavras com que preenchia o caderno evocavam, para ele, o artigo
respeitante à «matéria escura» que enviara para uma revista de astronomia. Por detrás
dos acontecimentos precisos e dos rostos familiares, sentia perfeitamente tudo o que se tornara matéria
escura: breves encontros, reuniões falhadas, cartas perdidas, nomes e números
de telefone figurando numa antiga agenda e que foram esquecidos, e aqueles e
aquelas com quem nos cruzamos sem sequer nos apercebermos. Como na astronomia,
esta matéria escura era mais vasta do que a parte visível da vida. Era
infinita. E ele anotava no seu caderno raras e débeis centelhas vindas do fundo
da escuridão. Tão débeis, as centelhas, que Bosmans fechava os olhos e se concentrava,
à procura de um pormenor inovador que lhe permitisse reconstituir o conjunto,
mas não havia conjunto, nada mais do que fragmentos, poeira de estrelas.
Gostaria de ter mergulhado naquela matéria escura, de restabelecer um a um os
fios quebrados, sim, de voltar atrás para fixar as sombras e ficar a saber mais
sobre elas. Impossível. Restava, portanto, encontrar os apelidos. Ou mesmo os
nomes próprios. Serviam de ímanes. Traziam à superfície impressões confusas
difíceis de esclarecer. Pertenciam à fantasia ou à realidade?
Mérovée. Um
nome ou um apelido? Era preferível não se concentrar muito no caso, não fosse a
centelha extinguir -se definitivamente. Procedera bem ao apontar a palavra no
caderno. Mérovée. Fingir que estava a pensar em outra coisa. A única maneira de
a recordação se definir por si mesma, muito naturalmente, sem ser forçada.
Mérovée."
(http://recursos.portoeditora.pt/recurso?id=9928590)
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