HÁ UMA CRISE NA ECONOMIA DA AMIZADE MASCULINA. ELES TÊM CADA VEZ MENOS AMIGOS. O QUE TEM UM PREÇO. E É COBRADO
É
uma teoria que tem vindo a tropeçar em mim e já não posso evitar. E diz assim: os homens têm cada vez menos amigos. Há um declínio tão grande nas suas relações de amizade — seja esta vista como instituição ou como conceito — que se tornou numa preocupação. Tudo terá piorado com a pandemia, dado que as relações se deslaçaram ainda mais. Mas a crise já vinha com as redes sociais, a falta de tempo para fazer as mais pequenas coisas e pelo facto de os homens serem... homens. Pode argumentar-se: mas não havia uma “epidemia de solidão”? Se sim, para quê dentro da “economia da amizade” criar essa singularidade masculina? Li no “El País” um belo texto sobre este tema, escrito por Miquel Echarri, que me fez ver que isto já não é coisa só do lado de lá do Atlântico: “A cadeia de fornecimentos de ‘almas gémeas’ de um crepúsculo a outro, como diria Albert Camus, está a interromper-se. E desta vez, não podemos culpar um inoportuno entupimento do Canal de Suez, como no caso dos microchips; no culto da amizade lenta, será por falta de fregueses.” Gostava de ter escrito isto. Mas o ponto é este: os homens têm mesmo menos amigos?
Há que encontrar o ponto de ignição, como os bombeiros nos incêndios. Na minha conceção, a resposta poderá estar na alexitimia, termo que aprendi ao ler abundantemente sobre a “crise da amizade masculina”. Alexitimia, ou cegueira emocional, é um termo que descreve a incapacidade de reconhecer, expressar e descrever as emoções. E assenta como uma luva no ser-se homem — no geral. E a amizade masculina é muitas vezes caracterizada por uma mudez afetiva (talvez em estado de embriaguez as comportas se abram), uma não necessidade de exprimir estados de alma ou uma incapacidade de pedir ajuda emocional. E isso faz com que a angústia, a dor e a depressão associada a essa solidão sejam, por um lado, encapsuladas e, por outro, que os amigos não sirvam necessariamente para apoio emocional. É uma definição de especialistas: amigos “são cúmplices eventuais com que se repartem pequenas rotinas” e não “confidentes ou uma rede de apoio” — como fazem as mulheres.
É-me incompreensível ver a minha namorada a falar horas no FaceTime, com amigas, de coisas banais que se passaram na véspera quando se encontraram ou de como se sentiram perante algo que vivenciaram e já discutiram. Não invento. Mas garantem os peritos que é assim que se criam laços de intimidade e de apoio. Os homens “têm um sentido muito instrumental da amizade”. Os homens guardam amigos por atacado. E regressam a eles de anos a anos. E recomeçam onde tinham ficado na última vez. Nos EUA e na Grã-Bretanha, em 20 anos, o número de amigos que os homens diziam ter passou para metade. E o número dos que afirmavam não ter amigo algum disparou. Em relação a este “homem solitário”, há um grande paradoxo. Mas aparentemente deu-se um fenómeno: a emergência do homem só contemporâneo.
O fenómeno existe em Portugal. Noutros países, os cientistas sociais queixam-se da incapacidade de os homens serem sinceros nos estudos que se realizam; por cá, há apenas falta de estudos. O investigador brasileiro Celso Grecco replicou em Portugal o seu trabalho sobre o impacto da solidão na produtividade das empresas, em que nos coloca em linha com a “Sociedade do Cansaço”, para utilizar a expressão do filósofo de culto Byung-Chul Han, que descreve a patologização do cansaço e da solidão como característica fundacional da sociedade contemporânea. Um ciclo em que “a depressão leva à solidão e a solidão leva à depressão”. Portugal não é exceção. Pelo contrário.
Esta peculiaridade masculina pode comprovar a tese de que a educação dos rapazes é direcionada para esconder vulnerabilidades e valorizar a dureza, o que faz com que não desenvolvam ferramentas para expressar a emotividade necessária à intimidade que se espera da “amizade”. E as amizades digitais são bullshit. É por isso que para os homens, mais do que amigos, “há momentos de amizade”. “Cultivar” e manter uma amizade exige uma proatividade a que os homens não se “sujeitam”, mas as mulheres sim. De bom grado. Os homens necessitam de um projeto comum para irem ter com os amigos. Ver a bola, ou fazer qualquer coisa em conjunto. Ora, o isolamento, além de impactos na saúde mental, tem também consequências na saúde física — de probabilidades de Alzheimer (uma doença masculina) a doenças coronárias: é uma lista infindável.
Mas a sociedade dá imagens conflituantes do tal “homem só”. Ele é o símbolo do sucesso, do macho alfa que atingiu o topo sozinho, sem ajuda de ninguém. O homem do último andar, supostamente invejado, é um homem só. O símbolo da liberdade masculina nos filmes de Hollywood é um homem só, numa jornada solitária, nada que o prenda. E as prateleiras estão cheias de aventureiros que bateram recorde “sós”. E, simultaneamente, é a maior descrição de um falhado, a do troll na cave, em fóruns da “manosfera”, a internet da masculinidade onde se promove a misoginia, os “direitos dos homens”, os “incels”, o antifeminismo, e onde grupos ressabiados prometem vingança contra a sociedade em geral por não terem acesso ao poder que consideram merecer por ter nascido com uma pila e por serem rejeitados (a priori) por mulheres bonitas — são “homens sós”.
Perguntei ao ChatGPT se a amizade como tal, concebida por Aristóteles, e as amizades das redes sociais se podiam comparar. E a versão ainda burrinha da Inteligência Artificial (3,5) foi perentória: as “amizades humanas são uma parte essencial da vida”, as digitais não. A “recessão da amizade” fará vítimas: o homem só, mesmo o de sucesso, está talhado ao fracasso.
Luís Pedro Nunes, E-Revista Expresso, Semanário #2653, 1 de setembro de 2023
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