sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Uma vida dantesca

 


CULTURE CLUB/GETTY IMAGES




Há 700 anos morria um daqueles poucos autores que se tornaram intemporais. Dante Alighieri, florentino, exilado, estudioso, apaixonado e habilidoso negociador, deixou uma obra monumental

TEXTO LUÍS M. FARIA

N

a passada terça-feira, dia 14, cumpriram-se 700 anos sobre a morte do poeta italiano Dante Alighieri. Tal como Miguel de Cervantes, Dante é autor de um dos maiores livros da literatura mundial, um daqueles que fornecem ao mundo símbolos que permanecem muito para lá do seu tempo. “A Divina Comédia”, sua obra máxima, não é apenas a história de uma viagem de um homem pelo Inferno, o Purgatório e o Paraíso — lugares que na Idade Média, convém lembrar, eram tidos como reais —, é também uma fonte inexaurível de inspiração para artistas. Uma amostra disso pode ser apreciada numa exposição, que abre hoje na Fundação Calouste Gulbenkian, sobre as imagens que Dante inspirou ao pintor Sandro Botticelli.

Uma comemoração deste tipo implica também edições novas da obra do poeta. “A Divina Comédia”, de que já existia uma versão portuguesa relativamente recente por Vasco Graça Moura, vai ter outra igualmente em verso, por Jorge Vaz de Carvalho, numa edição da Imprensa Nacional. Noutros países acontece o mesmo, com o poema retraduzido no seu todo ou em parte. (Nos EUA, alguém notou que desta vez a atenção parece ter ido especialmente para o Purgatório, a única parte do poema que se passa na Terra.)



DANTE — UMA VIDA
Alessandro Barbero
Quetzal, 2021, trad. de Artur Guerra e José Colaço Barreiros
ISBN: 9789897227202
Nº de Páginas: 384 


Além das traduções, também há livros de outro tipo, desde ensaios a biografias. Um exemplar deste último género acaba de sair em Portugal na editora Quetzal, “Dante — Uma Vida”, assinado pelo historiador Alessandro Barbero, e tem a particularidade de não ser propriamente uma obra de divulgação, como é habitual no autor. Embora siga largamente uma ordem cronológica, o texto é mais forênsico do que narrativo, com capítulos individuais a discutirem aspetos distintos da vida de Dante e do contexto em que ela decorreu.

O autor não se limita a explicar a geografia física, social e política de Florença entre os séculos XIII e XIV. Analisa em pormenor os trâmites da genealogia e do património familiar de Dante, antes, durante e após a sua vida, a sua atividade política (o exame das atas de reuniões em que ele participou é tão detalhado que o próprio autor, a certa altura, admite que “pode parecer tudo inutilmente complicado, mas analisando as circunstâncias com paciência podemos entender o que estava em jogo”), as suas deambulações no exílio e os motivos por que foi (se é que foi, pois em muitos casos isso também não é certo) para determinadas cidades em determinados momentos.

Inevitavelmente, há muita especulação, enunciação de hipóteses alternativas, avaliação da evidência, etc. Fica-se com a ideia de que o autor, depois de todo o trabalho que teve a procurar deslindar os muitos enigmas ainda sem resposta — e que jamais a terão em definitivo —, quis partilhar o processo com os leitores. Ou, pondo a questão de outra forma, Barbero não foi capaz de deixar nada de fora. Isso pode ser visto como autoindulgência ou então como uma forma de escrúpulo. Se as diversas possibilidades fascinam o estudioso, é natural pensar que os leitores, ou pelo menos alguns, sentirão o mesmo que ele. De qualquer modo, se uma possibilidade existe, ainda que residual, é intelectualmente honesto admiti-la. Mas o resultado é que “Dante — Uma Vida” não pode ser considerado o livro ideal para introduzir o poeta a alguém que não o conhece. Com tanto material acessório, o risco de que a atenção do leitor se perca é bastante sério.

Para quem persistir, o que lá está vale a pena. Os traços gerais da biografia de Dante são conhecidos, mas Barbero acrescenta sempre qualquer coisa. Em relação ao famoso segundo encontro com Beatriz, por exemplo — o primeiro tinha sido aos 9 anos, e Dante apaixonara-se instantaneamente —, lemos o seguinte: “O jovem de 18 anos, dizíamos, encontra-se no quarto a meditar o encontro com Beatriz. De noite sonha com ela (nua, vale a pena notá-lo, embora o diga com um toque tão ligeiro que os exegetas não costumam comentá-lo) e acorda tomado por uma violenta emoção. (...) Naquele mundo tinha aparecido há pouco uma novidade que fazia furor entre os jovens, entenda-se aqueles de condição social suficientemente elevada para saberem ler e escrever e terem tempo para se dedicar aos livros e às discussões: analisar a paixão amorosa, esse assunto de interesse comum, e traduzir a análise em versos e não em latim, mas sim na língua de todos os dias.”

O amor já nasce literário, portanto. Na sequência disto, vem um capítulo sobe a educação de Dante. Depois do estudo tradicional das chamadas artes liberais (da retórica e da aritmética à astrologia e à música), passou a dedicar-se à poesia, à filosofia e à história. “Era senhor da sua vida e vivia dos rendimentos, portanto podia dedicar-se ao que mais lhe agradava”, diz Barbero, notando que o estudo da filosofia “custou caro” a Dante, pois gerou nele uma obsessão com a verdade. “Era possível recuperar quem seguia o erro e a mentira: o erro era o acidente que transformava para pior uma substância não má, por isso era preciso tentar destruir o erro e não quem o cometia; e Dante convenceu-se de que fazia uma obra criticando asperamente o erro, para corrigir os errantes.”

A seguir fala-se de política. Na Florença extremamente faccional do tempo, Dante, que antes cultivava ativamente a sociedade dos jovens nobres, uma vez envolvido em política, passa a apoiar o chamado governo do povo. Os anos cruciais da sua ação pública, entre 1295 e 1301, determinaram o resto da sua vida. Ele sairia derrotado por uma cisão dentro daquele que era o seu partido original, os Guelfos. Divididos estes em brancos e negros, Dante achou-se do lado errado e acabou por fugir de Florença, acusado de corrupção, com os seus bens confiscados (embora, curiosamente, a confiscação tivesse natureza temporária, pois os herdeiros poderiam voltar a reavê-los) e condenado à morte.


Pintura localizada em Santa Maria del Fiore, na qual Dante segura “A Divina Comédia”: de um lado está Florença e do outro uma visão do Inferno | DAVID LEES/CORBIS/VCG VIA GETTY IMAGES



Nas duas décadas seguintes, Dante andou entre várias cidades do norte de Itália, acolhido por senhores que lhe conheciam a reputação. “O facto de ser um político com uma certa notoriedade, e sobretudo um poeta e um dictator de clara fama, contribuiu sem dúvida para encontrar hospitalidade”, afirma Barbero.

Em negociações de alto nível, os seus talentos eram preciosos. “Dante era também um grande profissional da comunicação política, cujos serviços podiam ser voluntariamente procurados e recompensados”. Referindo que acabavam por sair baratos dadas as circunstâncias em que o poeta se encontrava, Barbero conclui: “Era um homem precioso a empregar nas chancelarias, que deviam estar sempre a necessitar de pessoal qualificado.”

Mau grado toda a boa vontade, não deixava de ser um exilado, e várias vezes se queixou da pobreza em que tinha caído e da vergonha que ela implicava. Nunca perdeu a esperança de regressar à sua cidade em triunfo e fez o que pôde por isso. Mas dois grandes reveses arruinaram tal possibilidade. O primeiro, logo em 1304, foi uma operação militar mal calculada que parece uma espécie de Baía dos Porcos florentina. O outro, já em 1313, foi a súbita morte, por doença ou envenenamento, do imperador Henrique VII. Dante escrevera o seu famoso tratado “De Monarchia” em referência a ele, e o seu desaparecimento arruinou de vez as possibilidades de um regresso a Florença, pelo menos em termos que Dante pudesse aceitar — i.e., com total segurança e sem a humilhação de um pedido de desculpas.

As vicissitudes políticas obrigaram-no a mudar várias vezes de residência. Viveu os últimos anos em Ravena, onde ainda hoje se encontra o seu túmulo e que partilha com Florença o legado da sua memória.

Luís M. Faria. E-Revista Expresso, Semanário#2552, de 24 de setembro de 2021



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