terça-feira, 24 de agosto de 2021

Déjà vu

 



AQUI ESTÁ UM SPOILER PARA A VIDA REAL: JÁ SE PERCEBE O QUE ACONTECE QUANDO TEMOS UM DÉJÀ VU



Está mais ou menos instituído como verdade aceite que mesmo antes de morrermos, nomeadamente numa situação inesperada e violenta, a nossa vida desfila perante nós. Mas sempre tive para mim que a expressão “vi a minha vida passar frente aos meus olhos” tinha um significado que servia para explicar quão perto teríamos estado da morte. Ao ponto de chegar ao estágio de rever memórias. Mas há mesmo relatos de “vida a passar frente aos olhos” há mais de um século, só que os cientistas têm andado ocupados com outras coisas que acham mais importantes para a Humanidade. Não sei quanto aos demais, mas espero que se cair do Empire State Building a minha vida passe frente aos meus olhos. Mais que não seja para distrair do encontro desagradável que irei ter com o passeio. Entretém na viagem. E espero que seja um best of.

O primeiro caso descrito que se saiba pertence a um geólogo suíço, Albert Heim, que em 1892, caiu de um precipício e que garante que durante a queda viu toda a sua vida “desenrolar-se em numerosas cenas como se estivesse num palco ao longe”. Desde aí é algo que entrou na cultura popular. A cena típica do filme em que se fixa da pupila do ser em perigo, ou à beira de quinar, e vemos com ele os momentos mais importantes desde o nascimento ao primeiro beijo, etc. Um clássico.








Mas nem todos os casos são idênticos. Alguns reveem toda a sua vida, outros apenas alguns eventos que têm especial significado. Há algumas teorias vagas relatadas por publicações de Ciência. A minha favorita é a que quando estamos perto da morte as nossas memórias fazem um unload de conteúdos que provoca uma cascata de impressões mentais (é mais complexo que isto. É só para dar um lamiré). O problema é que nenhuma teoria explica que nesse flash antemorte — um período por vezes menor que um segundo — uma pessoa reveja todos os eventos de vida. Sim, como é possível o cérebro ordenar e processar uma tão vasta e complexa quantidade de informação?

Uma explicação complementar tem a ver com ignorar a velha noção do tempo como seta que se move do passado para o futuro no qual temos acesso através do presente. Não vou chamar Kant ou Einstein para estas crónicas (coitados) — mas vamos tentar aceitar que a perceção de tempo pode ser um produto do nosso estado de consciência. E em algumas situações o tempo desacelera tão dramaticamente que segundos parecem minutos. Contextos amplamente conhecidos em estados de emergência ou de meditação profunda ou atletas na “zona”. Será essa a explicação para que perante a inevitabilidade da morte tenhamos a possibilidade de esticar o tempo e rever uma rapsódia da nossa vida? Há quem se conforme e ache que estes são fenómenos sobre os quais, possivelmente, nunca teremos uma resposta definitiva. Tem sido assim com os túneis de luz descritos por muitos em experiências quase-morte. É o caminho para Além ou o cérebro a ficar sem oxigénio?

Eu sou pelo Saber. Há quem diga que acrescenta pouco à Humanidade e tira algum sabor à vida. Pode ser. Mesmo que seja um spoiler para filmes? Por exemplo, já se compreende o mecanismo cerebral que explica o déjà vu. Não, não está a vivenciar a mesma situação duas vezes. É o cérebro a pregar-lhe uma partida. Para já vou arriscar que não deve haver pessoa que não tenha experienciado aquela sensação bizarra de “já ter vivido” aquele momento. Daquilo estar a ser uma “repetição” ao ponto de fazer arrepios. Um déjà vu. Graças a deus que lá em cima há cientistas que se interessam por coisas terrenas. Claro que depois de termos acesso a esse conhecimento — mesmo na sua forma mais simplificada e formatada para leigos — já não há como voltar atrás. É como saber quem é o assassino no início do filme. Neurologistas da Universidade de Staint Andrew, Escócia, fizeram uma série de experiências com ressonâncias magnéticas para induzir situações de déjà vu. O previsível era que fossem ativadas áreas cerebrais dedicadas à memória, mas o que se viu foi um maior funcionamento das partes consagradas à tomada de decisões. Ora o que isso quer dizer é que o déjà vu ocorre quando as regiões frontais do cérebro estão revendo as nossas lembranças em busca de algum tipo de erro nas nossas memórias — o que provoca esse tipo de conflito entre a sensação de recordar um evento e o facto de sabermos que não há hipótese de o ter vivido antes.

“O cérebro tenta resolver o conflito”, mas atribui sinais errados da memória. Notamos uma estranha inconsistência nas nossas lembranças, mas continuamos com a nossa atividade sem modificar o nosso comportamento. Não deixamos de fazer o que estamos a fazer só porque tivemos um déjà vu. O estranho é que há pessoas com mais tendência para ter déjà vu. Ou o seu sistema de comprovação não está funcionando bem. Ou a sua memória erra pouco.

Os déjà vu tendem a desaparecer com a velhice. É possível que o cérebro vá calibrando a sua perceção das lembranças. Ou porque envelhecer é uma porcaria para o cérebro. Mas diz o líder desta investigação: “É importante deixar claro que isto é meramente especulativo”, embora a experiência tenha resultados muito consistentes. Há sempre a hipótese de ser como no filme com o Denzel Washington que voltou ao passado para evitar um atentado. Filme que se chama “Déjà Vu” que já vi várias vezes, mas só a meio me lembro que lá estou a ver de novo o mesmo filme. Não é déjà vu. É estar xexé.

Luís Pedro Nunes. Mito Lógico - Déjà vu, in E-Revista Expresso#2547, de 20 de agosto de 2021 

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