terça-feira, 28 de novembro de 2023

Escola a ler... Contra a violência de género | 9º, 10º

 

27 de novembro, Dia laranja
 
 
A pequena vendedora de fósforos de Cabul, de Diana Mohamadi, foi o livro selecionado pela Biblioteca como proposta de leitura em voz alta pelos alunos das turmas do 9º, 10º e 1º ano dos Cursos Profissionais.
 
 
 
EXCERTO:
 
Se a mamã tem tão boas razões para estar nervosa, foi porque cometeu, há alguns anos um crime relativamente ao qual nunca irá perdoar-se. Digo “crime” porque é assim que ela o vive, embora no Afeganistão o ato dela não tenha nada de repreensível. Pelo contrário, é algo perfeitamente comum. A mamã, seguindo os conselhos da avó, vendeu a minha irmã mais velha, Farzana, a um talibã que a cobiçava há algum tempo. Já não tínhamos dinheiro ou o que quer que fosse para comer. Por isso, quando Rachid veio a casa pedir a minha irmã em casamento, a minha mãe não teve outra escolha senão dizer “sim”. Farzana tinha 13 anos. A idade que tenho hoje. Penso muitas vezes nisso.
Lembro-me perfeitamente da boda. Não teve nada de habitual. Os casamentos, de qualquer forma, nunca são muito felizes. A noiva tem de estar triste e chorar um pouco para mostrar aos pais que está triste por ter de os abandonar. A minha irmã não teve de se esforçar. No seu vestido verde tradicional, o rosto dela parecia ainda mais pálido. Não tinha a maquilhagem exagerada que, de um modo geral, as noivas ostentam, porque os talibã proibiam-na. Parecia tão pequena sentada no chão, com as pernas atrás de uma almofada. Baixava a cabeça, e a sua inclinação não nos permitia distinguir-lhe a boca, que ela mordia com força para não chorar. Não houve música. Não houve dança. A mamã penteara-nos lindamente, às raparigas. Excecionalmente, a refeição tinha carne. O papá sorria. A mamã também. Ela dizia a Farzana: “Vais ser feliz com ele. É um homem respeitado. Protegerá a tua virtude e cuidará de ti.” Farzana olhava para ela e aquiescia, como se também ela quisesse acreditar naquilo, naquela hipocrisia de felicidade familiar. Tudo era então mentira.
Percebo-o melhor hoje, quando vejo quanto a minha mãe sofre na pele por ter sacrificado e vendido a filha. Do dia para a noite, Farzana teve de se despedir da infância e entrar com fracasso na sua nova vida de adulta e de mulher. Tudo isto em troca de cerca de 2000 dólares.
Hoje tenho a idade de Farzana e apercebo-me de como esse casamento forçado e a saída precipitada de casa devem ter sido uma violência terrível para ela. Era apenas uma menina, e os adultos não souberam protegê-la. Decoramos vagamente um táxi com flores de plástico e grinaldas. Não houve fotografias nem vídeos, porque o novo marido da minha irmã, na sua fúria iconoclasta , bania qualquer reprodução humana ou animal. A minha irmã entrou no táxi com o marido, um homem 20 anos mais velha do que ela. Repetia-me: “Não posso, Diana, não sei… Não sei ser uma esposa.” Eu era ainda tão pequena… O que podia dizer-lhe? Comprada por 2000 dólares para enterrar a sua infância e aceder a uma vida de miséria…Farzana levou dois anos a ficar grávida. O marido dela começava a dizer que lhe tínhamos vendido uma má rapariga. De facto, ela ainda não entrara na puberdade!
Com certeza que a mamã gostaria de ser uma mãe como as outras. Uma mãe que protege os filhos das rudezas do mundo. Mas não teve alternativa. Ao sacrificar uma filha, salvava os outros 13 filhos. Deve ter sido o que pensou para aceitar o impensável. É o que me diz quando consegue falar nisso. A maioria das raparigas no Afeganistão é casada antes da idade legal de 16 anos. Com os pachtuns, uma tribo do Sul e do Leste, acontece frequentemente que meninas de 5 anos sejam já prometidas a homens bem mais velhos. Dito de forma menos consensual, nós, raparigas afegãs, temos um verdadeiro valor mercantil. Essa situação mete-me nojo, a ponto de me prometer a mim mesma nunca vir a casar-me. Não sei se conseguirei opor-me a essa tradição, pois os costumes são tão resistentes!
 
MOHAMADI, Diana – A pequena vendedora de fósforos de Cabul. Lisboa: Livros de Seda, 2010, pp. 79-81. ISBN 9789727707829

Sem comentários: