quarta-feira, 8 de junho de 2022

Síndrome de Stendhal

 


FICAMOS ESMAGADOS COM A SUCESSÃO ININTERRUPTA DE OBJECTOS BELOS, ANTIGOS OU MONUMENTAIS, UMA IMPRESSÃO INTELECTUALIZADA QUE NEM SEMPRE DESPERTA UMA REACÇÃO PSICOSSOMÁTICA

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tendhal, o mais italiano dos romancistas franceses, estava em Florença em 1817 quando teve uma espécie de afrontamento ao observar na Basílica de Santa Croce os frescos mitológicos da cúpula e os túmulos de gente ilustre como Maquiavel ou Miguel Ângelo. Confuso, cambaleante, cheio de palpitações e tonturas, atribuiu o seu estado às “sensações celestes trazidas pelas belas-artes e pelos sentimentos apaixonados”, como escreveu no livro de viagens “Rome, Naples et Florence” (1826). Hoje chamamos a essa condição “síndrome de Stendhal”, uma categoria estética, mais do que um distúrbio psíquico homologado.

Também sofri de síndroma de Stendhal em Itália. Os sintomas foram bastante menos dramáticos, mas ficamos de facto esmagados com a sucessão ininterrupta de objectos belos, antigos ou monumentais, uma impressão intelectualizada que nem sempre desperta uma reacção psicossomática. Mas se em Itália já ia preparado, porque a arte italiana, no seu auge, não tem comparação, este ano aconteceu-me de surpresa na Haia, quando visitei o Mauritshuis sem saber nada sobre o museu.


Autorretrato de Rembrandt aos 63, em 1669, ano da sua morte.

O sólido e elegante edifício neoclássico, originalmente erguido em meados do século XVII para um aristocrata, Johan Maurits, conde de Nassau-Siegen, governador do Brasil holandês, foi reconstruído após um incêndio, comprado pelo Estado, e tornou-se mais tarde no primeiro museu público holandês, expondo as “curiosidades e pinturas” acumuladas pelos príncipes de Orange. A colecção inclui numerosas obras dos mestres flamengos, de Van der Weyden (1400-1464) a Holbein, Van Dyck, Bruegel, Rubens e Frans Hals (c. 1582-1666), e tem também Rembrandts e Vermeers. Mas não estava à espera de entrar em salas pequenas e contíguas, sem muito público, e deparar-me com “A Lição de Anatomia do Dr. Tulp” (1632), logo a seguir o “Auto-retrato aos 63 Anos de Idade” (1669), e depois a “Rapariga com Brinco de Pérola” (c. 1665). Impressionou-me a proximidade, o espanto. E à identificação de um quadro já muito visto em reproduções seguiu-se o efeito da “aura”, a tranquilidade intranquila daquelas imagens introspectivas e enigmáticas.

Começando pela lição de anatomia, encomenda da guilda dos cirurgiões, saltam à vista os enormes colarinhos brancos, que dão um aspecto antigo ao que é manifestamente uma obra sobre a modernidade e o saber de experiências feito; os homens atentíssimos à autópsia em contraste com outros, hieráticos, compostos, a olhar para o espectador; e a evidência de que os mais alourados de entre eles parecem quase tão brancos como o branquíssimo morto, um ladrão enforcado, a quem se juntarão em breve. No auto-retrato de Rembrandt, o último que pintou, no ano em que morreu, toca-me a completa aceitação daquilo que se é; a arte como espelho sofisticado, fiel ao factual e ao não-lisonjeiro; e a maturidade e mestria tanto do sujeito aos 63 como da apurada técnica com que o sujeito se representa. Quanto à rapariga, tão célebre e tão fotografada que o museu acrescentou uma barreira que serve também de apoio, comove-nos ainda mais ao vivo o incompleto movimento do pescoço, interrogativo e calmo, “um mover de olhos, brando e piedoso”, as discretas cores e os discretos brilhos, o incongruente brinco volumoso, o amarelo e azul do turbante, o vermelho molhado dos lábios entreabertos e perdulariamente eróticos. Não tive palpitações ou tonturas, mas compreendi o que Stendhal compreendeu: a voracidade da beleza e a verdade do visível.

Pedro Mexia, Fraco Consolo, in Expresso Semanário#2588, de 3 de junho de 2022

O escritor escreve de acordo com a antiga ortografia


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