domingo, 12 de junho de 2022

Desmarcar sem culpa

 



CANCELA-SE POR MENSAGEM, ESTÁ-SE PRESO A GRUPOS DE WHATSAPP, CHEGA-SE MUITO ATRASADO. O SOCIAL PÓS-COVID

A

guerra na Ucrânia está a ser desagradável em muitos sentidos, mas toca todos os níveis da sociedade portuguesa — mesmo geograficamente estando no extremo do continente europeu onde se sofrem os verdadeiros horrores do conflito. Dou um exemplo. Gostava de ter visto o filme da covid chegar ao fim. Isto assim não teve graça. Continuo a receber mensagens de negacionistas que vão buscar uma declaração do Bill Gates ou uns dados sobre a ineficácia de máscaras ou das vacinas e limito-me a responder. “A guerra...” Tipo, que interessa uma frase descontextualizada quando há um conflito que pode descambar na extinção da Humanidade por armas termonucleares? É uma sacanice? Sim. Resolve? Sim. Mas sofro o mesmo mal. Quero discutir as alterações comportamentais ocorridos no regresso à (falsa) normalidade e ouço uma voz imaginária: sério? E a guerra?

Arrisco. Um dos problemas do conflito na Ucrânia para nós que estamos longe dela é que veio somente trazer mais stresse a dois anos de stresse. Quando agora se deveria estar a vivenciar um momento de descompressão, juntou-se mais pressão, que surge através de imagens na TV ou da inflação ou dos preços da gasolina. E as pessoas ou acumulam e ficam bombas-relógio ou pura e simplesmente desligam e ficam-se a marimbar para tudo. Talvez demais. O “Wall Street Journal” garantia há dias que estava a acontecer algo na sociedade cosmopolita das cidades que era desconhecido ou inaceitável até então: os cancelamentos de última hora. As pessoas pura e simplesmente tinham perdido o sentido de “culpa” ao mandar um SMS em cima da hora a anunciar que já não iriam comparecer. “Você não sabe quais os planos são até realmente estar lá.” Ora, a perda dessa culpa social era filha da covid. Durante dois anos as pessoas tinham-se habituado a faltar a compromissos, a não poder ter planos completamente fechados porque podiam desmoronar-se no último minuto, e efetivamente a ter planos que eram desmarcados em cima da hora. Houve uma dessacralização do “vamos ter mesmo de ir senão o que é que eles vão pensar” e substituiu-se pelo “manda aí um SMS a dizer que não podemos ir”. Este laissez-faire tem tido fortes consequências na indústria da restauração (desmarcações em cima da hora com prejuízos), de casamentos e nas amizades (que levam ali uma martelada de cinzel, pode ficar uma picadinha ou pode rachar). Este é um problema: é que normalmente era o imperativo de não poder desmarcar que as obrigava a ir independentemente da disposição e que as colocava lá. Depois, afinal, até podiam divertir-se. Mas sem a penalização social, a estrutura desmembra-se.


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E há problemas que têm de ser urgentemente resolvidos. Os grupos dos grupos do WhatsApp. Se calha a ser raptado para um seja de uma festa, ou casamento, evento ou viagem de bicicleta aos Alpes é o inferno. Não há hipóteses de recusar ser membro desse grupo (só irei anunciar via SMS que não vou na véspera). Há a probabilidade de não conhecer algumas das pessoas do grupo. E, acima de tudo, não posso sair — e normalmente são grupos muito produtivos em que duas ou três pessoas criam às dez mensagens numa hora. Só posso retirar as notificações. Sair do grupo iria colocar no feed a marca horrível: “Fulano deixou o grupo.” Se fosse à festa seria ainda mais ostracizado. O “deixar o grupo” tem várias interpretações, mas a alcateia reage sempre como se tivesse sido o elemento mais fraco e triste a autoexpurgar-se, não o mais cagão. E depois é incompreensível porque é que os senhores do WhatsApp não retiram aquilo: querem que fiquemos presos a grupos a que não queremos pertencer. O WhatsApp teve a decência de criar um modo de apagar mensagens que por vezes nos arrependemos ou enviamos enganadas para grupos/pessoas erradas (algumas delas, enfim, visando os próprios mas que a nossa mente, na sua infinita perversidade autossabotadora, faz com que enviemos para o alvo) mas deixa lá a bufaria: “Fulano apagou a mensagem.” Para quê? Não era para ajudar? Assim ainda cria mais curiosidade. Não, o WhatsApp não facilitou as festas. Criou essa ilusão para quem organiza. Que a determinado ponto tem aquilo controlado e todos vão aparecer.

Finalmente há o chegar à festa. Há muitas escolas de pensamento e fórmulas matemáticas sobre a hora a que se deve chegar. O que vem no convite é meramente uma abstração a partir da qual se deve construir o atraso. O objetivo é chegar quando a festa está a atingir o seu momentum. Mas para isso é necessário que já lá esteja um número suficiente de “outros”. É o conceito de fashionable late. Se todos pensarem nestes termos, a festa das 20 só arranca lá para meia-noite. A doutrina avança para que numa coisa tipo jantar se deva cumprir a regra dos 38 minutos, ainda há dias fui informado num artigo. Os 30 minutos é cedo e 45 é tarde. E há o risco de os verdadeiros fashionable porem mais 38 minutos sobre os 38 dos que querem ser... isto é complexo. Embora se estiver ainda na vida a tentar descobrir qual a hora para chegar a uma festa possa ser como eu: já desmarcou e faltou tantas vezes mesmo antes da covid que já não é convidado para nenhuma. E não ia porque continuava a ser pontual e chegava às 20 quando os anfitriões ainda nem estavam vestidos. Era destas coisas que devíamos estar a falar. Mas Putin estragou a festa como um sonso bêbado às duas da manhã. Há sempre um.

Luís Pedro Nunes, "Mito Lógico - Desmarcar sem culpa", in Expresso Semanário#2589, de 9 de junho de 2022


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