quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Humanizar os Direitos Humanos


 

 

<span class="arranque">CAMINHO</span> “O Par de Sapatos”, Vincent van Gogh, 1886, Museu Van Gogh, Amesterdão <span class="creditofoto">D.R.</span>
“O Par de Sapatos”, Vincent van Gogh, 1886, Museu Van Gogh, Amesterdão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Há 75 anos nasceu uma declaração envolta num mar de dúvidas: deveria o documento ser “justiciável”, ou seja, racionável em tribunal, ou deveria ser apenas um documento de valor ético-moral?

 

TEXTO RUI TAVARES HISTORIADOR, DEPUTADO E COLUNISTA DO EXPRESSO

N

a noite em que a Declaração Universal de Direitos Humanos foi consagrada, há 75 anos cumpridos no passado dia 10 de dezembro, o libanês Charles Malik regressou ao seu hotel vindo do Palais de Chaillot (em Paris, onde a aprovação tinha tido lugar) e escreveu no seu bloco de notas uma frase em alemão, retomada de Heidegger, cujo enigmático sentido se poderá traduzir mais ou menos assim: “Demasiado tarde para os deuses, demasiado cedo para o ser.”

Charles Malik estava roído de dúvidas. Depois de muito tempo a deliberar sobre os artigos da Declaração Universal — se eles incluiriam apenas direitos e liberdades cívicas e políticas ou se incluiriam também direitos económicos, sociais e culturais; se penderiam mais para os direitos individuais ou mais para os direitos coletivos; se versariam exclusivamente sobre direitos ou se haveria artigos também para os deveres; e, finalmente, se a Declaração Universal viria a ser uma convenção juridicamente vinculativa, que se poderia levar a tribunal para corrigir injustiças, ou apenas um documento com valor moral, dependente da força que a opinião pública lhe viesse a dar —, não havia certezas sobre o fruto de todo aquele trabalho. Daí aquela frase que interpreto como que sugerindo que a imperfeita humanidade, chegada à Declaração Universal de Direitos Humanos depois da tragédia moral da II Guerra Mundial, se encontrava ainda apenas a aprender a ser ela mesma.

Frase, por ironia, levantada da obra de um filósofo que aderiu ao nazismo e com quem o jovem Charles Malik, cristão maronita e humanista, tinha no passado estudado.

É bom começar por esta nota perturbadora porque, passadas todas estas décadas, a Declaração Universal de Direitos Humanos dá por vezes parecenças de uma torre de marfim ou de um obelisco intemporal que nos tivesse chegado já acabado, uma espécie de decálogo que em vez de entregue por Deus a Moisés fosse remetido à Humanidade pela ética pura. Tratam-na assim alguns dos seus defensores. Não foi assim. A Declaração Universal foi feita por humanos, todos eles complexos, todos eles imperfeitos, todos eles contraditórios, que importa resgatar.

Mas é também crucial humanizar os direitos humanos, porque há outra tendência contrária — a que considera os direitos humanos como sendo um puro produto da hipocrisia política, uma farsa neocolonial imposta pelo Ocidente aos outros, um pedaço de papel que se arroga do universalismo quando não passa de um pretexto pronto a ser usado por qualquer imperialismo de turno. Não foi assim, e não é assim.

Em primeiro lugar, a Declaração Universal de Direitos Humanos não foi de todo uma obra de ocidentais. Se é certo que a presidente da Comissão que a redigiu foi Eleanor Roosevelt, ex-primeira-dama dos Estados Unidos, mais certo ainda é que as grandes forças motrizes detrás do seu conteúdo foram intelectuais e diplomatas como o libanês Charles Malik, o chinês P. C. Chang ou o judeu francês René Cassin. Por sua vez, estes trabalharam por cima do trabalho de levantamento filosófico feito pela UNESCO, que pediu a poetas, líderes espirituais e religiosos, juristas e filósofos de todos os países, regiões do mundo e culturas para responderem à pergunta se havia uma base moral e filosófica para a ideia de direitos humanos nas suas diferentes tradições de pensamento. As respostas vieram de todo o mundo e foram entusiasmadamente positivas. A tradição ocidental, de origem francesa, dos “direitos do homem”, levou uma inflexão mais inclusiva através da proposta de emenda feita pela delegada indiana, Hansa Mehta, uma professora que havia estado presa por lutar pela independência do seu país, e que criou a expressão “direitos humanos”, que agora usamos. A Declaração Universal de Direitos Humanos foi obra de muitos homens e mulheres de todo o mundo.

Em segundo lugar, isso mesmo, mulheres. Não é verdade que a Declaração Universal tenha sido uma criação meramente utilitária de governo para usar a seu bel-prazer nas suas jogadas de política internacional. Os governos que saíram vencedores da II Guerra Mundial não deram de imediato atenção à ideia de criar uma carta de direitos para a Humanidade, interessados que estavam em discutir esferas de influência e em arquitetar a Carta das Nações Unidas de maneira a garantir os seus poderes de veto. O único desses políticos que tinha revelado um interesse em criar novas “cartas de direitos” era Franklin Roosevelt, mas Roosevelt morrera em 1945. Foi o escândalo moral das primeiras descobertas dos campos de concentração e extermínio que despertou consciências e deu forças àqueles exilados e ativistas que traziam bem alto o ideal dos “direitos do homem” desde o século XIX; dos tempos de Victor Hugo e do caso Dreyfus. E foi muito em particular o trabalho de diplomatas de países fora do centro de poder a garantir que a Comissão de Direitos Humanos fosse criada. Aí tiveram particular importância as únicas quatro mulheres entre os mais de 850 diplomatas presentes — Minerva Bernardino, da República Dominicana; Wu Yi-fang, da República da China (Taiwan); Virginia Gildersleeve, dos EUA; e a única de língua portuguesa, a cientista Bertha Lutz, do Brasil — que levaram a igualdade entre homens e mulheres à carta da ONU, e que com diplomatas homens de países então considerados “periféricos”, como Carlos Peña Rómulo, das Filipinas, então recém-independentes, forçaram a formação da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Os EUA nomearam Eleanor Roosevelt para esta comissão por a acharem um peso-pluma da política, e não um peso-pesado como os senadores que conspiraram para a atirar para esse cargo.

Em terceiro lugar, havia perfeita consciência entre estes homens e mulheres de que a Declaração Universal era uma aproximação e, portanto, um trabalho imperfeito. E mais, que era bom aproveitar aquela janela de oportunidade para a redigir, antes que as rivalidades entre o bloco soviético e o bloco ocidental viessem a tornar o exercício impossível. Por isso a Declaração acabou por beneficiar de uma combinação equilibrada entre os direitos cívico-políticos defendidos pelos delegados anglo-americanos e os direitos laborais, económicos, sociais e culturais defendidos pelos diplomatas de leste — e aqui o papel de outra mulher, a bielorrussa Evdokia Uralova, deve ser salientado. O chinês P. C. Chang, cientista, filósofo e dramaturgo de base de pensamento confuciano, foi muita vez o artífice desses equilíbrios. Mas a principal hesitação, a dúvida que a todos roía naqueles dias de há 75 anos, era saber se o documento deveria ser “justiciável”, ou seja, racionável em tribunal, ou se deveria ser apenas um documento de valor ético-moral. Para o fim do processo de redação, Eleanor Roosevelt e os seus companheiros perceberam que, se fossem optar pela primeira via, teriam de deitar fora grande parte do conteúdo que foram coligindo, e que era inaceitável como lei vinculativa para alguns Estados, encabeçados pelos EUA e pelo Reino Unido. Não houve então outro remédio senão optar pela via de consagrar a Declaração Universal de Direitos Humanos como apenas palavras no papel, um bonito poema escrito pela Humanidade ao seu futuro, uma mensagem numa garrafa a flutuar para o futuro, sem certeza de onde iria ela parar.

As primeiras dúvidas justificaram-se, uma vez que a Declaração Universal de Direitos Humanos fez um caminho paulatino nos anos subsequentes a 1948, sendo apenas adotada pelos países que decidiram inseri-la nas suas constituições (como Portugal, a partir de 1976) ou por regiões do mundo que adotassem catálogos de direitos semelhantes, como a Convenção Europeia de Direitos Humanos, de 1950.

Mas a partir dos anos 1970, sobretudo por efeito das lutas de libertação e de emancipação de povos colonizados ou segregados, a Declaração Universal de Direitos Humanos começa a ser brandida pelos oprimidos como uma lembrança aos seus signatários de que faltava cumprir a sua promessa. Também aí — ao contrário do que uma visão cínica quer sugerir — se vê como os Direitos Humanos são importantes sobretudo para quem os não tem, e que a má consciência de muitos ocidentais para com eles é muitas vezes apenas a projeção de um colonialismo às avessas que não percebe como o anticolonialismo depende de uma visão da inviolabilidade da dignidade humana, e da sua universalidade.

Os direitos humanos consagrados em 1948 não são perfeitos, nem foram escritos por humanos perfeitos. Ainda bem. Também não são uma promessa vazia, como muitos querem fazer crer. Foram inventados por nós. E, se os levarmos a sério, bastaria cumpri-los para levar a nossa existência coletiva a um outro plano muito mais elevado. 75 anos depois, ainda revolucionários.

 E-Revista Expresso, Semanário#2669, 22 de dezembro de 2023

 

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