Tiago Reis Marques, um dos coautores do estudo, alerta para a formação de uma “cicatriz biológica” no cérebro das mulheres Foto: Getty Images |
Ressonâncias magnéticas provam pela primeira vez que a discriminação feminina reduz a ‘massa cinzenta’
VERA LÚCIA ARREIGOSO
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Quase oito mil ressonâncias magnéticas do cérebro de homens e mulheres de 29 países foram estudadas pelos investigadores — todos psiquiatras e dedicados, sobretudo, à doença bipolar — e permitiram provar pela primeira vez que a desigualdade de género inflige uma lesão no cérebro feminino. O dano cerebral é evidente nas mulheres que vivem em países socialmente pouco desenvolvidos.
As nações participantes foram ordenadas por índices locais de igualdade de género e de desenvolvimento, de acordo com a classificação do Banco Mundial. “Tivemos uma grande dificuldade em encontrar amostras de países com muitas desigualdades, mas conseguimos imagens da Índia, África do Sul, Chile, Colômbia, México ou China. Há exceção da Turquia, não temos países de matriz muçulmana. O outro fator muito importante foi controlar as variáveis que poderiam trazer viés, como idade, Produto Interno Bruto do país, estrato social... Tivemos muito cuidado para não existir interferência de outros elementos que explicassem as alterações cerebrais além da desigualdade de género”, garante Tiago Reis Marques, psiquiatra, investigador do King’s College em Londres e um dos autores.
O olhar atento dos investigadores permitiu ver que a discriminação das mulheres reduz a espessura cortical — a ‘massa cinzenta’ onde se concentram os neurónios — em comparação com o cérebro masculino. “Homens e mulheres não devem ter diferenças na espessura cortical, área que tem uma relação direta com a função cognitiva. Aliás, onde há maior paridade de género, a espessura do córtex é igual e por vezes até maior nas mulheres”, explica o psiquiatra.
A análise foi feita em áreas cerebrais com mais interesse, tendo sido avaliadas 68 subregiões, e foi ainda observado que os danos “são mais acentuados em regiões do cérebro associadas à resposta ao stresse, à resiliência ou a estruturas de controlo emocional”. Ou seja, a desigualdade promove um declínio cognitivo e um maior risco de problemas psíquicos. “Estas consequências não são um reflexo pontual no tempo, vêm de idades muito jovens ao nível do neurodesenvolvimento, da infância e adolescência até ao início da idade adulta”, afirma Tiago Reis Marques.
LESÕES AO LONGO DA VIDA
Nas conclusões publicadas, é salientado o efeito do estímulo prolongado no tempo. “Na generalidade, a associação observada pode resultar da exposição a um ambiente adverso e à consequente resposta ao stresse ao longo da vida. Isto pode significar que as diferenças entre sexos na espessura cortical teria sido menor no início do desenvolvimento, aumentando com a idade. Isto corrobora as descobertas que destacam o papel da desigualdade de género na maior prevalência de depressão entre as raparigas durante a adolescência”, escrevem os autores.
“Não sabemos se a lesão é reversível, mas o cérebro é bastante plástico e está em constante remodelação face à exposição ambiental. Portanto, é natural que se adapte caso exista um novo estímulo”, acredita o investigador. Neste caso, o tratamento é viver numa sociedade sem desigualdade de género, com oportunidades iguais independentemente do sexo.
As razões para a ‘massa cinzenta’ feminina ficar mais fina com a discriminação são, por agora, desconhecidas. “Sobre o porquê só podemos especular. Provavelmente, porque a desigualdade de género reflete-se em menos oportunidades e num stresse aumentado face ao que sofrem”, admite o médico português. “Sabíamos já que o cérebro responde aos estímulos no ambiente, sejam negativos ou positivos. Por exemplo, à alimentação, à exposição a ambientes mais ricos em criança, ao stresse, às drogas, à educação, à violência.” E agora as ressonâncias magnéticas revelaram o dano infligido em concreto.
“Este estudo acrescenta o imperativo biológico aos imperativos moral, social e ético que já existia para atuar pela paridade entre homens e mulheres.” A intervenção social ganhou mais um ímpeto, pois a cada dia que passa há lesões a formarem-se no cérebro de mulheres discriminadas. Tiago Reis Marques chama-lhe mesmo uma “cicatriz biológica”.
Os psiquiatras destacam que a descoberta da existência de uma consequência neurobiológica negativa para as mulheres que vivem em ambientes sociais com desigualdade de género não pode ser inconsequente. Os investigadores reclamam que estas conclusões sejam consideradas em futuras políticas públicas, principalmente naquelas onde a desigualdade de género é mais evidente.
PORTUGAL SEM DADOS
“Estes resultados destacam a relevância do ambiente macrossocial onde se manifestam as diferenças sexuais na estrutura cerebral. São necessários estudos futuros para examinar os mecanismos envolvidos, os fatores moderadores e o tempo de desenvolvimento, oferecendo novas oportunidades para políticas informadas pelas neurociências para a promoção da igualdade de género”, lê-se no documento.
Tiago Reis Marques revela que o estudo não contou com ressonâncias magnéticas do cérebro de portuguesas. Não há muitos dados — o exame é dispendioso, mesmo ao abrigo do Serviço Nacional de Saúde —, mas também não faria diferença. “Felizmente, estamos no patamar dos países com maior igualdade de género.”
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