quarta-feira, 17 de maio de 2023

Banho de gelo? A culpa é dos podcasts

 





HOJE, QUANDO SE QUER SABER MAIS PROFUNDAMENTE ACERCA DE UM ASSUNTO, NÃO SE LÊ UM LIVRO. OUVE-SE UM PODCAST

C

omecei a ouvir falar de Wim Hof há meia dúzia de anos. “The Iceman” tinha um método fantástico para ajudar na recuperação pós-treino: enfiarmo-nos em água com gelo, e combinar com movimentos respiratórios. Ainda descarreguei a aplicação, admirei a sua capacidade para suportar o frio e os seus recordes do “Guinness” — como nadar em temperaturas glaciais ou fazer meia maratona descalço no gelo e na neve —, mas fiquei por aí. Chegados a 2023, constato que muito mudou. As banheiras de gelo são mainstream (confesso que tenho uma que mandei vir da China, é insuflável, mas a nossa relação é complicada), e nesta primavera há retiros Wim Hof (com um protégé) na serra da Estrela, nada baratos. Os banhos de gelo são a cena. Mas se “a exposição deliberada ao frio” se tornou tão popular, tal não se deve (exclusivamente) a Wim Hof. É isso que faz deste fenómeno dos banhos no gelo um exemplo interessante de como há hoje uma via “paralela” de acesso ao conhecimento.

E essa via são os podcasts. Os podcasts têm hoje uma importância que não consigo quantificar, mas que imagino ser grande na difusão do saber (algum dele falso). O exemplo é ter ali dentro, na casa de banho, uma triste banheira de plástico. Não foi por ver os inúmeros documentários do Wim Hof, ou porque li algum livro dele, ou por ter ido a uma palestra. Foi porque num podcast ouvi um convidado, Andrew Huberman, um neurocientista especializado em neurobiologia, psiquiatria e ciências comportamentais da Universidade de Medicina de Stanford, a falar longamente do assunto. E achei interessante. E daí, passei para o seu podcast, o Huberman Lab, onde em longos episódios de quase três horas disseca todos os aspetos, por exemplo, dos “banhos de gelo e os benefícios do frio”, ou onde convidados falam de “envelhecimento e hormonas” de “suplementação e exercício”, ou de “compulsões alimentares em homens”. Ou seja: há uma dúzia de anos, iríamos à procura de um livro chamado deliberadamente “Banhos de Gelo para Totós”. Hoje, tem-se acesso imediato aos maiores cérebros na área, que desconstroem o assunto de forma relativamente acessível num podcast. Estou a falar de banhos de gelo, mas serve para qualquer área. Este é um instrumento de conhecimento notável para quem o quer utilizar.

Sim, foi a lábia do professor Huberman que me convenceu, mas ouvi mais umas cinco horas de podcast. E há quem o contradiga com ciência. Mas no final dos episódios estão os links dos estudos citados, etc. Huberman é um apologista da “exposição ao frio autoinduzido” (é um latagão, quase cinquentão, que faz muito ferro e artes marciais), mas, ao contrário do que por aí consta, alega que esta deva ser feita logo de manhã, ao acordar. E não após o exercício, como é a grande moda, supostamente para tratar inflamação. Há um grande hype por entre desportistas e celebridades do mundo inteiro com isto da imersão em gelo. Os grandes ganhos, garante Huberman, são mesmo os banhos em água gelada ao acordar.

E não precisam de estar gélidos. Têm é de provocar um choque térmico. E digo-vos que entre cinco a dez graus é muito frio. Já estive naquela situação da sauna e banhos no buraco de gelo no Hemisfério Norte. Mas aqui, há uma tristeza e desconsolo em acordar e ir, por vontade própria, para dentro de um tanquinho de água gelada. A ideia é estar mesmo muito desconfortável. Nos primeiros segundos, há uma descarga de adrenalina (epinefrina) e noradrenalina (norepinefrina) no corpo e no cérebro, e há um momento de “fight or flight”, perde-se parte da capacidade de inspirar (que há que controlar) e 30 a 80% da capacidade cognitiva, em particular no córtex frontal, e o cérebro manda sinais de pânico. Nesses primeiros segundos, é mesmo aguentar. Só se consegue autonegociar ao fim de uns 20 segundos; e ao contrário da ideia feita de tentar “não pensar em nada”, o melhor é mesmo optar por resolver problemas, reativar a função cerebral, dado ser um excelente exercício para a vida, pois está-se sob uma situação de grande stresse (controlado) e vai aprender-se a manter o foco. Este será um dos motivos por que as tropas especiais usam tanto a água fria, uma vez que exige que os seus elementos, sob stresse intenso (pânico e capacidades cognitivas afetadas), sejam capazes de reagir. Mas é a neuromodulação da dopamina que se destaca na melhoria da nossa disposição, fazendo-nos sentir energizados e aumentando a capacidade de concentração. A dopamina tem essa capacidade de motivar para determinado objetivo — as pessoas não se sentem bem no ambiente stressante do gelo, mas acabam por relatar uma melhoria na disposição durante umas horas após a imersão deliberada na água gelada. Confirmo. Depois, há a questão do metabolismo e da quantidade de “gordura branca”, que por ação do frio se transforma em “gordura castanha” (que se “queima” mais facilmente).

Esta é a síntese que consigo fazer. Não estou a vender banheiras. Algures, devo ter dado um espalho, mas não sou neurocientista da Stanford. Ouçam os podcasts. Apenas quero dizer que é um horror entrar no banho gelado pela manhã. Sim, o cérebro bloqueia; e sim, vamos criando cada vez mais resistência e querendo a água mais fria. E torna-se viciante por causa da dopamina, está bom de ver. Mas Huberman, amigo... isso é tudo muito bonito, mas onde é que eu arranjo todas as manhãs 12 kg — que, direi, já são 14 kg — de gelo para arrefecer 250 litros de água a menos de cinco graus? Os moços da Glovo recusam-se a trazer. Mesmo em duas viagens.

Luís Pedro Nunes. Expresso Revista, Semanário#2636, de 5 de maio de 2023


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