O NATAL DEIXA-NOS COM UM PRESENTE NAS MÃOS: CONFIA-NOS UM VERBO PARA TODOS OS DIAS DO ANO. E ESSE VERBO É NASCER
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Mesmo a quem não crê a manjedoura repete o seu anúncio: que Deus nos deu um salvador. E di-lo numa linguagem que universalmente se pode perceber. Na verdade, este salvador toma a nossa carne, assume em si as nossas trajetórias, partilha as nossas esperanças e desalentos, pisa este mundo, vibra com ele, ama, sofre e, como qualquer ser humano, é muitas vezes ferido. “Hoje, em Belém da Judeia, nasceu-vos um salvador” — revelam as narrativas evangélicas aos pastores. Estamos a dois mil anos deste anúncio e tão longe da Judeia, mas nestes dias, qualquer que seja a estação existencial em que nos situemos, esta palavra se revela verdadeira. E a chegada de um salvador opera um sobressalto. A nossa vida não só passa a valer mais: transforma-se também noutra coisa. Alcança um sentido, ganha uma força, recebe um entusiasmo que só Deus é capaz de inscrever. Agora o que somos não é só a sofrida indecisão, o balanço irresolúvel entre bondade e imperfeição, entre o que desejamos e o que não conseguimos.
Há, claro, uma desproporção na forma como esta revelação nos é apresentada. As escrituras dizem, por exemplo, que o mal será erradicado, que o arsenal de guerra será ultrapassado, que toda a violência se extinguirá como cinza e que nós o veremos. “Mas como?” — justamente interrogamos. E resposta não podia ser mais desconcertante: “Porque um menino nasceu para nós. Um filho nos foi dado.” Deus atua, de facto, de forma surpreendente e paradoxal. Conta com a fragilidade como força, explica-nos que não se vence a violência com a violência, nem a opressão com outra opressão. É daqui que devemos partir: de um nascituro indefeso deitado numa manjedoura. Precisamos, para isso, de acreditar mais na potencialidade que tem a vida frágil, a vida nua. Deus ilumina e relança a vida na sua condição mais pequena, a vida mínima, a vida que apenas nasce, a vida estreme, sem retoques, sem ornamentos, a vida apenas. O desafio é acreditar nas possibilidades que esta vida desencadeia em nós.
O Natal deixa-nos com um presente nas mãos: confia-nos um verbo para todos os dias do ano. E esse verbo é nascer. Um acontecimento que normalmente colocamos no princípio da vida e do qual pensamos que ocorre uma única vez. Ora, o Natal entrega-nos o verbo nascer como um programa de vida, um mapa sempre em aberto, sempre a ser refeito. O menino que o Natal celebra diz a cada um: “Agora nasce tu.”
José Tolentino Mendonça. Que coisa são as nuvens, Expresso Semanário#2617, de 23 de dezembro de 2022
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