Na República Islâmica que pretende tutelar os seus corpos, as mulheres iranianas vivem sem liberdade e sem futuro
“Mulheres, Vida, Liberdade” coloca simbolicamente a justa luta das mulheres iranianas no centro de uma mais vasta, pela vida e pela liberdade de todo um povo. A morte de Mahsa Amini foi uma faísca num rastilho pronto a incendiar.
Segundo o Global Gender Gap Report do Fórum Económico Mundial, de março de 2021, o Irão estava em 150.º lugar, de 156 países, na igualdade de género. As mulheres ganham em média 18% do que os homens ganham, apenas 19% participam no mercado de trabalho e por cada mulher em lugares de poder político e económico havia quatro homens. No parlamento, eram 6%. Isto, apesar de o Irão ter as mulheres mais instruídas do Médio Oriente.
Dois terços das mulheres iranianas foram vítimas de violência de género pelo menos uma vez na vida. Os crimes de honra são comuns no país. A primeira lei que penaliza a violência contra as mulheres foi aprovada em 2021 pelo anterior governo, mas ainda não está em vigor. A lei tinha sido acusada por ativistas de ter falhas graves, como não penalizar o rapto conjugal.
Na República Islâmica que pretende tutelar os seus corpos, as mulheres iranianas vivem sem liberdade e sem futuro. A polícia de costumes, que se tornou mais repressiva desde a subida ao poder de Ebrahim Raisi, prende e tortura mulheres por dá-cá-aquela-palha. A jovem curda Mahsa Amini foi morta pela polícia de costumes por porte irregular do véu islâmico. Reparem: uma peça de roupa (que não sabemos se Mahsa usava por opção ou por imposição) mal-enjorcada, como diria a minha avó.
Mahsa entrou em coma na esquadra da polícia. Testemunhas afirmam que terá sido agredida na cabeça. Quando caiu no chão, colapsada, não terá recebido assistência médica imediata, apesar dos gritos de alerta das outras detidas. O que é certo é que a família de Mahsa, que a viu ser levada à força pela polícia no dia 13, só voltou a ter contacto com a jovem já em coma, no hospital. O inquérito oficial à morte de Mahsa identificou um tumor cerebral como causa de morte.
Desde então, as ruas do Irão encheram-se de manifestantes que arriscam a vida sob o mote “Mulheres, Vida, Liberdade”. A repressão tem sido pesada: as ONG denunciam quase 400 mortos e mais de 16 mil detidos. O governo instituiu entretanto a pena de morte para os manifestantes e já condenou 21 pessoas, com o objetivo de espalhar o terror e dissuadir quem protesta.
Há uma semana, a 35.ª sessão especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU, dedicada à “deterioração da situação de direitos humanos na República Islâmica do Irão, especialmente no que diz respeito às mulheres e às crianças”, aprovou a criação de uma missão para averiguar as violações de direitos humanos no país. Votaram contra Arménia, China, Cuba, Eritreia, Paquistão e Venezuela. De entre os 16 países que se abstiveram, destaca-se o Qatar, anfitrião de um evento desportivo organizado por uma associação que se diz “firme no seu compromisso de proteger e promover os direitos humanos”.
Khadijeh Karimi, a representante iraniana na reunião, em representação da vice-presidente para as Mulheres e os Assuntos Familiares do governo do Irão, papagueou o mantra dos protestos instigados pela “reação enviesada e apressada de algumas autoridades ocidentais” e pela sua “intervenção nos assuntos internos do Irão”, que “tornaram as reuniões pacíficas em motins e violência”. Quatro dias mais tarde, viria a confirmação oficial do regime, pela boca do Ministro dos Negócios Estrangeiros: “o Irão não cooperará com o comité político formado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU”. A vice-presidente em questão, Ensieh KhazAli, é a única mulher do governo. O site do Conselho Nacional da Resistência do Irão, numa publicação de setembro de 2021, cita-a nestes termos: “Os homens não gostam que as mulheres saiam muito de casa. O meu marido até definiu um limite de 15 horas por semana para o meu trabalho fora de casa. O meu marido espera que eu aceite sempre o que ele diz, e eu assim faço.”
O Relatório 2021/22 da Amnistia Internacional, publicado em março, pinta o retrato de um país profundamente repressivo, no qual as mulheres, a comunidade LGBTI, as minorias étnicas e os dissidentes políticos enfrentam a prisão, a tortura e a morte. As redes sociais estão bloqueadas. As penas judiciais incluem flagelações, amputações e enucleação (ou seja: remoção do globo ocular). O Irão detém o recorde de condenações à morte per capita. É prática comum negar cuidados médicos necessários aos detidos (como atesta a falta de assistência a Mahsa). Entre janeiro de 2010 e setembro de 2021, houve pelo menos 72 mortes suspeitas de detidos. Segundo os Repórteres Sem Fronteiras, mais de mil jornalistas foram detidos, torturados (e alguns mortos) no Irão, desde 1979. O uso de força desproporcional contra os manifestantes é usual. Em julho de 2021, onze manifestantes que protestavam contra a falta de água em duas províncias do país morreram alvejados por agentes da autoridade.
O presidente Ebrahim Raisi (que tomou posse em agosto de 2021) esteve implicado na prisão, tortura e execução de vários milhares de opositores políticos em 1988. O responsável da ONU pela investigação das violações de direitos humanos no Irão apelou a um inquérito internacional independente acerca dos abusos do final da década de 80 e ao papel do novo presidente nos mesmos. Quando confrontado com as acusações, este retorquiu “Se um juiz ou um procurador defendeu a segurança do povo, ele deveria ser elogiado. Tenho orgulho de ter defendido os direitos humanos em todos os cargos que ocupei até agora.” É torcionário e orgulha-se.
A elite política e religiosa, profundamente corrupta, vive vidas faustosas à custa da miséria do povo. Dados oficiais de 2020 mostravam que metade da população era pobre. No último ano, o preço dos bens alimentares aumentou quase 90%. Uma em cada três crianças não tem alimentos suficientes e o trabalho infantil é comum.
A miséria leva as famílias a casarem cedo as suas meninas: as estatísticas oficiais registam 100 casamentos de crianças menores de 15 anos por dia e entre março de 2021 e janeiro de 2022 há registo de 172 casamentos de meninas entre os 5 e os nove anos. São novas para serem exploradas sexualmente, mas há uma sinistra coerência nisto tudo: a idade de responsabilidade criminal é de 9 anos para as raparigas e 14 para os rapazes, segundo a Human Rights Watch. Na prática, isto permite a um juiz condenar alguém à morte por atos cometidos antes dos 18 anos. Não nos admiremos, por isso, com as 58 crianças mortas nos protestos, contabilizadas até agora pelas ONG. Um regime que mata as suas próprias crianças não pode ter futuro.
Nasrin Sotoudeh, advogada iraniana, ativista de direitos humanos, condenada a 38 anos na cadeia, está em prisão domiciliária em Teerão. No dia 18 de novembro ganhou o prémio Robert Badinter pela sua luta contra a pena de morte. O seu discurso, lido por um representante, rezava assim: “Eu, Nasrin Sotoudeh, advogada e prisioneira política no Irão, peço a todo o mundo que seja os olhos e os ouvidos dos iranianos durante estes dias difíceis. Dias que veem os jovens que usaram o seu direito legal a participar no movimento Mulheres, Vida, Liberdade condenados injustamente à morte.” Este texto é o meu modesto contributo para o desejo de Nasrin Sotoudeh.
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