segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Para acabar o dia

 



CHEGUEI AO “DIÁRIO” NA ADOLESCÊNCIA, MAIS AO MENOS NA ALTURA EM QUE CONHECI TORGA, LEVADO PELO MEU PAI AO CAÓTICO CONSULTÓRIO DO LARGO DA PORTAGEM


Em 1941, numa das habituais edições de autor espartanas, Miguel Torga publicou o seu “Diário I” (respeitante aos anos de 1932 a 41), cujo último volume, o XVI, sairia em 1993.

Torga apresenta-o como um diário a contragosto. “A vida (...) é para se viver, não para se fazer dela literatura.” Este diário, “monólogo” de publicação incerta, “sendo um livro para o público (...), seria também um livro meu, o que poucas vezes acontece a um autor. Precisamente porque seria íntimo (...), feito sem pretensões, apenas com a manha necessária para interessar também a curiosidade alheia (...).” E Torga confessa que gostava mesmo era de escrever “em cifra”, em código, de escrever uma confissão ininteligível.






Em “Diário I” quase todos os ímpetos identitários são reduzidos à insignificância. 
Embora seja muito inteligível, até por causa da “prosa tão emendada, tão riscada” e de uma “poda beneditina aos adjectivos”, o “Diário” tem uma estratégia de rasura do circunstancial, do identificável, que faz com que inúmeras entradas se refiram a um “N.”, a um “inimigo”, a uma “tragédia amorosa”, a uma “ela” que disse isto ou um “ele” que fez aquilo, até chegarmos à elipse de uns poemas do Inverno de 1939-40 que vêm datados apenas “Cadeia do Aljube”, sem mais. Acontecimentos como o casamento ou uma guerra mundial também surgem em brevíssimas alusões, quase não se dá por eles. A vontade de uma “cifra”, se manifesta um pudor, também sugere um tumulto. Por isso, Torga queixa-se, a propósito de Gide, aliás um dos grandes diaristas contemporâneos, de uma “plenitude” que lhe é estranha. E ao descrever uma noite mal dormida fala de “um sono inquieto, meu”, como se até o sono assumisse as características do homem.

Se Torga desmerece o diário, não desmerece por completo a vida. Uma vida que não é tanto Coimbra (“não presta, nunca deu nada esta Coimbra”), nem a Europa pela qual viaja fascinado e distante, antes os regressos regulares a São Martinho de Anta, “o chão que os meus pés sabem pisar”. Tudo o que é evanescente ou hipócrita em literatura ou na sociedade, é verdadeiro entre fragas e penedos. Uma verdade bruta, animal, que o diarista observa enquanto médico, parente ou vizinho. É a verdade dos partos complicados, das doenças abjectas, das velhices moribundas, a verdade de ir à caça e de lavrar a terra, a verdade da pobreza, do “pragmatismo camponês”, da vox populi. E nisso a paisagem física e humana são incindíveis, de modo que Torga admite que não entende um português nascido numa terra portuguesa que ele não conheça.

Noutra entrada, a propósito de um poema de Goethe e de um reencontro com os pais, o diário usa a expressão “Weimar em Trás-os-Montes”. Aquele “eu” leitor do “Monte dos Vendavais” e de Dostoiévski, homem com estudos e com mundo, é antes mais um natural daquela terra, daquele paraíso granítico. “Preciso disto”, escreve Torga, do pasmo face à natureza, da compaixão na angústia, da ternura condoída com que fala dos seus: “Minha Mãe olha-me aflita, inquieta, cansada do meu cansaço. Meu Pai, esse, sofre sem dar sinal do que lá vai por dentro.” O “localismo” em literatura parece-lhe uma necessidade, uma evidência até, mas também uma insuficiência, uma estética limitada, mais marco geodésico do que história universal.

Em “Diário I”, quase todos os ímpetos identitários, os egotistas como os colectivos, são reduzidos à insignificância. Quando Torga enumera os pertences que leva consigo numa viagem (uma gabardina, um pijama, uma pasta dentífrica, um pente), conclui que “um homem é pouca coisa”. E o mesmo se diga das multidões com quem se cruza, vidas singulares e especiais, mas transitórias e anónimas. Uma “desilusão crónica” atravessa estas páginas, um desespero empático, bem como um agnosticismo nostálgico de “um destino extrabiológico” que leva Torga, numa trovoada, a pensar em Santa Bárbara e não em Benjamin Franklin. E cita então uma frase exemplar e feroz do biólogo Jean Rostand: “O homem é conduzido pelo espírito a um sofrimento que está muito acima da sua condição.”

Cheguei ao “Diário” na adolescência, mais ao menos na altura em que conheci Torga, levado pelo meu pai ao caótico consultório do Largo da Portagem. Durante anos, descrevi os meus infaustos estudos jurídicos usando a fórmula com que começa o “Diário I”: “Passo por esta Universidade como cão por vinha vindimada. Nem eu reparo nela, nem ela repara em mim.” E agora que escrevo, quase diariamente, há vinte e tal anos, volto ao diário e sublinho este diálogo com o pai sobre cavar uma terra infértil: “Mas porque é que se cava também isto?”, pergunta Torga. “E ele, como quem sabia uma verdade eterna: — Para se acabar o dia.

Pedro Mexia. Para acabar o dia- E-Revista Expresso, Semanário#2516, 15 de janeiro de 2021


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