Exílio
"Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia como grades.”Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto, Livraria Morais Editora, 1962
Imagine um país que vive em ditadura, com censura sobre os livros e a imprensa. Um quarto da população é analfabeta. Está em guerra há vários anos com nações que colonizou e tem cerca de 150 mil jovens empenhados compulsivamente nesse conflito. Um dos generais de elevada patente escreve um livro no qual defende que a guerra não pode ser ganha militarmente e tece várias críticas ao regime. Um editor consegue convencê-lo a publicar, garantindo-lhe uma tiragem inicial de 50 mil exemplares. A análise, revisão e preparação do livro ocorre no maior segredo. O livro é impresso em cinco gráficas para evitar a apreensão e também devido à quantidade de exemplares. O autor-general faz chegar exemplares autografados ao Presidente da República e a vários ministros. É preparado um anúncio televisivo, cuja exibição a censura impede. Mas o sucesso do livro é estrondoso, para o qual muito contribui o jornal diário que o chama corajosamente à capa. Seis dias depois, o Chefe do Governo apresenta a sua demissão ao Presidente da República, que a recusa. O Governo organiza então uma cerimónia, transmitida pela televisão, para que os militares de alta patente declarem o apoio ao Governo e à continuação da guerra. À cerimónia faltam o autor-general e o número um da hierarquia militar. Ambos são demitidos no dia seguinte, o que precipita uma tentativa de golpe militar. Este fracassa, mas contribui muito para o sucesso da operação “Viragem Histórica” que haveria de derrubar o regime poucas semanas depois.
Apesar de todos estes ingredientes, não se trata de um enredo inventado: é a “biografia de um livro” que podemos ler em O General que começou o 25 de Abril dois meses antes dos Capitães, da autoria do jornalista João Céu e Silva e editado pela Contraponto. Portugal e o Futuro foi escrito por António de Spínola, Vice-Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, e publicado pela Arcádia. Os primeiros dois mil exemplares colocados à venda, a cem escudos, ao meio-dia de 22 de fevereiro de 1974 na livraria do Apolo 70, esgotaram pelas 15 horas! O República foi o Jornal que destacou o livro nessa 6.ª feira com a capa arrasadora “A guerra está perdida” — que devemos a Álvaro Guerra, que a modificou, aproveitando a ausência do diretor para o almoço. Marcello Caetano chefiava o Governo e a cerimónia de apoio das patentes militares — a “Brigada do Reumático” — ocorreu no dia 14 de março, precedendo a exoneração de Spínola e do CEMGFA Francisco Costa Gomes e o golpe militar falhado do 16 de Março. Foi com lágrimas nos olhos que Aníbal de São José Lopes, que dirigia a PIDE/DGS em Angola e Moçambique, terá declarado ao homólogo rodesiano a respeito de Portugal e o Futuro: “Não fui capaz de dormir — li e reli este livro — porque isto é o fim. É o fim do Portugal que conhecemos e amamos.” Este episódio é contado pela historiadora Irene Flunser Pimentel, num outro livro muito importante publicado pela Temas e Debates: Do 25 de Abril de 1974 ao 25 de Novembro de 1975. O inspetor da PIDE não se enganou e pouco depois chegava o “dia mais feliz das nossas vidas, e o mais importante”, como recorda Irene Pimentel na entrevista aqui publicada.
A ideia de que um livro de pouco mais de duzentas páginas, arremessado à cara do regime com o autógrafo do seu autor-general, contribuiu para derrubar uma Ditadura com 48 anos não pode deixar indiferente quem vive os seus dias entre — e para — os livros. E são mais de duas dezenas os livros recém publicados para que não nos esqueçamos do 25 de Abril e aos quais damos merecido destaque. Meio século depois da Revolução dos Cravos, há ainda muito por estudar e conhecer e subsistem obstáculos de monta ao trabalho científico, como a dificuldade de acesso a algumas fontes militares. Ainda tem sentido reivindicar LIBERDADE PARA LER. Numa das entrevistas centrais desta Somos Livros, a historiadora Maria Inácia Rezola descreve o trabalho que tem sido efetuado pela Estrutura de Missão do 50.º Aniversário do 25 de Abril para recordar as liberdades negadas pela Ditadura, e a surpresa (não exclusiva) dos mais jovens perante essa memória. Donde emergiu — conta-nos — uma ideia crucial para o futuro: “é preciso trabalhar para manter o que foi conquistado com o 25 de Abril”.
Sabemos que um dos partidos com maior
expressão parlamentar quer “uma nova madrugada para nos trazer um novo
regime”, porque “este já não serve”. Quer “outra democracia”, quer
“outra república”. Ao mesmo tempo, um coro de fazedores de opinião
defende o “diálogo com todos” e passa lixívia, debalde, nas nódoas
do traje com que tenta vestir a República. Como vimos em tantos momentos
históricos, a adesão popular a políticas que atentam contra a
liberdade, a dignidade e a vida humana desmente o sofisma de um povo
sempre sábio. Sérgio Godinho
lembra-o também nestas páginas, mas já o sabíamos pelas suas canções.
Por vezes, são perguntas inquietantes: “Que força é essa? Amigo / Que te
põe de bem com os outros / E de mal contigo?” Noutras, como em Fotos do fogo, alguém recorda o momento em que seguiu o rebanho:
“Nesta outra foto, não vou
dar descanso aos teus olhos
não se distinguem os detalhes
mas nota o meu olhar, cintila
atrás da cor do sangue
vou seguindo em fila
e atrás da cor do sangue
soldado não vacila.”
Elísio Borges Maia. Portugal e o Futuro - Revista Somos livros, Bertrand, Mês do Livro 2024, 10 de abril de 2024.
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