Uma reflexão sobre a dimensão, abrangência e problemática em torno da proliferação da desinformação e das falsas narrativas online.
Ficha TécnicaTítulo: A Desinformação—Contexto Europeu e Nacional (Contributo da ERC para o debate na Assembleia da República)
Edição: ERC—Entidade Reguladora para a Comunicação Social
Supervisão: Mário Mesquita, Vice-Presidente da ERC
Coordenação: Marta Carvalho, Técnica do Departamento Jurídico da ERC
Equipa Técnica: Eulália Pereira e Pedro Puga, Técnicos do Departamento de Análise de Media da ERC Francisco Azevedo, Técnico do Departamento Jurídico da ERC
Consultores: Rui Mouta, Diretor do Departamento Jurídico da ERC Tânia de Morais Soares, Diretora do Departamento de Análise de Media da ERC
Data: 4 de abril de 2019
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O Conceito de Desinformação
O presente projeto visa uma reflexão sobre a dimensão, abrangência e problemática em torno da proliferação de desinformação e falsas narrativas online, dentro do quadro legal europeu e nacional, circunscrita, porém, ao quadro de atribuições e competências cometidas à ERC – Entidade Reguladora da Comunicação Social, pelo que importará ter presente que não se almeja abordar exaustivamente todos os potenciais desafios, respostas e propostas que o problema da desinformação coloca.
O atual ambiente digital, pela profusão de fontes de informação que viabiliza e ampliação do seu potencial de influência à escala global e, simultaneamente, redução da influência dos meios tradicionais, permite que “fake news” e narrativas com objetivos menos claros floresçam.
Já em 2014, o Fórum Económico e Social apontava a propagação de notícias falsas como uma das dez maiores tendências das sociedades modernas [1] , o que bem se compreende, atendendo aos sucessivos e exponenciais avanços tecnológicos que permitem que a informação se dissemine nas plataformas de comunicação em linha, em especial as redes sociais, com uma escala e rapidez praticamente incontroláveis e com consequências imprevisíveis.
O problema em análise, que vai da simples divulgação e propagação de notícias falsas às mais organizadas campanhas de desinformação, inclusive levadas a cabo sob a alçada de países terceiros, é suscetível de semear desconfiança nas pessoas e alimentar tensões sociais, chegando, no limite, a representar ameaças à segurança interna, incluindo processos eleitorais, especialmente quando estão envolvidos ciberataques.
Neste contexto, e sobretudo após as eleições presidenciais americanas de 2016, em cuja campanha eleitoral se verificaram, alegadamente, interferências russas por via cibernética, os meios políticos europeus têm vindo a debater e estudar os efeitos adversos e a desenvolver planos de ação destinados a combater a disseminação de desinformação. Importa, antes de mais, clarificar o conceito de desinformação.
A expressão amplamente difundida de “fake news” é enganadora, tendo aliás sido inicialmente utilizada para denegrir o trabalho dos meios de comunicação social. Uma notícia, por definição, não é falsa. Falsas são as narrativas que, embora anunciadas como notícias e contendo partes de textos copiados de jornais ou de sites do mesmo género, integram conteúdos ou informações falsas, imprecisas, enganadoras, concebidas, apresentadas e promovidas para intencionalmente causar dano público ou obter lucro. Assim, tais narrativas podem nem sequer conter informação com conteúdo ilegal, como aconteceria se veiculassem discurso do ódio, incitamento à violência, terrorismo, pornografia infantil, a qual está sujeita a remédios regulatórios próprios sob a lei europeia ou nacional, embora sejam potencialmente nocivas para a formação da opinião pública e, por isso, para a sustentação da sociedade democrática.
Por outro lado, no conceito de desinformação também não se incluem outras formas deliberadas mas não enganadoras de distorção dos factos, como a sátira e a paródia.
A União Europeia, em janeiro de 2018, sob a égide da Comissão Europeia, criou um Grupo de Peritos de Alto Nível para aconselhar sobre iniciativas políticas para o combate às «fake news» e desinformação disseminada online tendo em conta o contexto eleitoral para o Parlamento Europeu em maio de 2019 [2].
No relatório elaborado pelos Peritos é evidenciado que a desinformação representa riscos que têm de ser coletivamente combatidos e contidos para total realização do potencial democrático, societário e económico do progresso tecnológico com respeito pela liberdade de expressão e a liberdade de receber e dar informação.
Para melhor delimitação do universo em causa, foi adotado como conceito operacional de desinformação toda a informação comprovadamente falsa ou enganadora que é criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que é susceptível de causar um prejuízo público. O prejuízo público abrange ameaças aos processos políticos democráticos e aos processos de elaboração de políticas, bem como a bens públicos, tais como a proteção da saúde dos cidadãos da UE, o ambiente ou a segurança.
A desinformação não abrange erros na comunicação de informações, sátiras, paródias ou notícias e comentários claramente identificados como partidários e, como já referido, não estão em causa conteúdos ilegais.
Os conteúdos incluem não só informação completamente falsa, mas também informação fabricada, misturando factos e práticas que vão muito além das notícias, de contas automáticas usadas para astroturfing (mascarar a proveniência de mensagens de movimentos políticos alegadamente legítimos), redes de falsos seguidores, vídeos manipulados ou fabricados, comunicações políticas ou comerciais dirigidas, trolling organizado, memes visuais e outros. Pode também envolver um conjunto de comportamentos digitais mais relacionados com a circulação de desinformação do que com a produção, desde o postar, ao comentar, o partilhar, o tweeting e o retweeting, etc.
É imprescindível que qualquer debate ou análise sobre estas matérias garanta o respeito e equilíbrio entre os diferentes direitos e princípios fundamentais, como a liberdade de expressão, o pluralismo, a diversidade e a fiabilidade da informação.
Na Declaração Conjunta das Nações Unidas (ONU), da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE), da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Comissão Africana para os Direitos Humanos e da Mulher (CADHP), sobre «fake news», desinformação e propaganda [3] é sublinhado o potencial da desinformação e da propaganda para induzir em erro e interferir com o direito do público de saber, bem como os direitos individuais de procurar, receber e partilhar informação e ideias de todos os tipos, sendo sublinhados, como objetivos a alcançar, com vista a garantir esses direitos sem interferência das autoridades públicas e independentemente das fronteiras, os seguintes:
i) Aumentar a longo prazo a resiliência dos europeus, dotando-os de sentido crítico que permita proactivamente reconhecer várias formas de desinformação.
ii) Assegurar que as respostas à desinformação são sempre atualizadas, o que requer uma monitorização constante da natureza em evolução do problema, da constante inovação na conceção de respostas adequadas e avaliação da sua eficiência.
Na Comunicação dirigida ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico eSocial Europeu e ao Comité das Regiões, subordinada ao tema «Combater a desinformação em linha: uma estratégia europeia» [4], de 26 de abril de 2018, a Comissão manifestou a preocupação da exposição dos cidadãos europeus à desinformação em larga escala, recordando que «[a]s nossas sociedades democráticas e abertas dependem de debates públicos que permitam a cidadãos bem informados expressarem a sua vontade mediante processos políticos livres e justos. Os meios de comunicação têm desempenhado, tradicionalmente, um papel essencial na responsabilização das autoridades públicas e no fornecimento das informações que permitem aos cidadãos formarem as suas próprias opiniões sobre questões sociais e participarem ativa e efetivamente na sociedade democrática. Na Europa, os meios de comunicação tradicionais estão sujeitos a uma vasta gama de regras sobre imparcialidade, pluralismo, diversidade cultural, conteúdos nocivos, publicidade e conteúdos patrocinados. A democracia na União Europeia assenta na existência de meios de comunicação social livres e independentes».
A desinformação mina a confiança nas instituições e nos meios de comunicação tradicionais e digitais e prejudica as nossas democracias ao comprometer a capacidade dos cidadãos de tomarem decisões bem informadas, portanto, a desinformação enfraquece a liberdade de expressão.
A principal obrigação dos intervenientes estatais é a de abster-se de interferir e censurar e garantir um ambiente favorável a um debate inclusivo e pluralista. O conteúdo legal, mesmo que se trate de conteúdo alegadamente nocivo, está geralmente protegido pela liberdade de expressão e deve ser abordado de forma diferente dos conteúdos ilegais, no caso dos quais se pode justificar a remoção do próprio conteúdo.
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