Os séculos XV e XVI são cruciais nas relações entre Portugal e a Europa, mas também no percurso individual de cada uma destas entidades, uma nacional e outra supranacional. Uma ideia há a reter: são duas centúrias impossíveis de desligar uma da outra, independentemente de tratar-se do campo da política, da cultura ou da religião. Por isso, preferimos ousar a afirmação os “longos séculos XV e XVI” à sentença mais tradicional e limitadora do “longo século XVI”.
Em termos da Europa propriamente dita, trata-se de duzentos anos de redefinição, sem dúvida – basta pensarmos na Reforma protestante ou na presença otomana efetiva em solo europeu –; mas de uma redefinição sempre no sentido das continuidades, isto é, pautada a cada momento por estas. Os dois exemplos acima referidos bastam para demonstrá-lo: nem a Reforma surgiu despegada do que a antecedeu (pensemos, por exemplo, em John Wycliffe, c.1328-1384, João Huss, 1369-1415, ou no próprio movimento da devotio moderna, que, iniciado na segunda metade de Trezentos, tem largas e impactantes repercussões no continente europeu); nem a presença otomana teve início na segunda metade do século XV, mas sim muito antes.
Sobretudo, em sentido lato, é simplista e redutor falar de uma simples e quase automática passagem da Respublica Christiana para uma Europa concebida enquanto cenário emergente das monarquias nacionais e das grandes Casas dinásticas. Nunca tal aconteceu de forma absoluta e muito menos se tratou de um processo maquinal, isto é, nem a Cristandade deixou de existir , apesar dos processos assinalados, nem a concepção de “Europa” surgiu abruptamente do nada. Na verdade, há muito que já se falava dela no sentido de uma realidade emocional, portanto, bem mais palpável do que uma noção meramente geográfica.
É caso para sublinhar de forma veemente o quanto é pouco operacional o recurso à tradicional noção de corte ou ruptura entre uma Idade Média conotada como um período estático e fechado sobre si mesmo e uma fase seguinte, a Idade Moderna, já inteiramente diversa, tendo pelo meio, qual ponte purificadora, o Renascimento. A interpretação oitocentista de Jacob Burckhardt sobre o Renascimento, e portanto também sobre a época medieval, apesar da sua importância, deixou há muito, como sabemos, de ser funcional. Como assinala Jacques Le Goff, “Esse período de transição, a que a época das Luzes chamaria Dark Ages – o Tempo das Trevas –, foi desde as origens definido pela expressão ‘Idade Média’ — um conceito pejorativo – como um período, se não negativo, pelo menos inferior ao que se lhe seguiu. […] Esta definição cronológica e pejorativa da Idade Média tem sido, de há decénios a esta parte e, principalmente, nos anos mais recentes, atacada pelos dois extremos. […] A oposição Idade Média/Renascimento é contestada em muitos aspectos. […] O passado respinga, sem dúvida, quando pretendemos sujeitá-lo e domá-lo com periodizações. Certas divisões são, contudo, mais destituídas de fundamento que outras para assinalar a mudança. Aquela a que se deu o nome de Renascimento não me parece pertinente. A maioria dos sinais característicos por meio dos quais se tem pretendido reconhecê-la surgiu muito antes da época em que a situamos (séculos XV-XVI).” É, pois, fundamental ter presente a fragilidade e o perigo das grandes classificações e periodizações estanques, como é precisamente o caso da relativa ao mundo medieval versus Renascimento/Idade Moderna. O que se designa tradicionalmente por Renascimento começou bem mais cedo do que se considera; por outro lado, a Idade Média não terminou com a queda de Constantinopla (1453) ou com as viagens pioneiras de Colombo (1492) e de Vasco da Gama (1497-1498). A “continuidade” é, mais do que nunca, um dado irrefutável e operatório para qualquer tentativa sólida de hermenêutica histórica, em particular tratando-se dos campos cultural, religioso e político, na viragem do século XV para o século XVI. Daqui resulta que a mundividência medieval é algo enraizado nesta sociedade de charneira, pelo que é impossível que novas práticas e orientações, quer políticas quer culturais e religiosas, se manifestem sem o peso da herança dos séculos anteriores. É um facto a coexistência de técnicas, ideias, estilos, modelos e gostos.
Partindo da análise de fontes tipologicamente muito diferentes (cronísticas, documentais, epistolares, iconográficas, entre outras), quer portuguesas quer estrangeiras, é objetivo desta antologia refletir de forma crítica sobre a composição e descrição de paisagens europeias no período em questão. Naturalmente, uma atenção especial é dada à relação entre Portugal e o continente de que faz parte: se por um lado se visa indagar sobre a forma como em Portugal, nos séculos XV e XVI, se projetava o espaço europeu, por outro ambiciona-se identificar a natureza das representações construídas entre Portugal e a Europa. Noutra vertente, buscam-se respostas válidas para questões centrais como o carácter e a constância das relações mantidas com os diversos territórios europeus.
As representações que suportavam as figurações desenvolvidas denunciavam identidades cada vez mais marcadas, mas também traziam consigo, ainda que na maioria das vezes de forma pouco declarada, evocações de uma consciência relativamente a um espaço e uma herança cultural comuns. Um sentimento precursor (ainda que, como destacámos, em continuidade, pois, os seus fundamentos localizam-se num “longo” tempo anterior), que não se identifica já exclusivamente com o conceito de Cristandade ou com a ideia imperial, mas que respeita à definição de uma “outra” identidade europeia fundada especialmente no contacto com o Turco e com as novidades oriundas dos territórios longínquos recentemente alcançados pelos reinos ibéricos (o Eu-civilizacional literalmente explode e expande-se neste processo proto-globalizador de contacto com o Outro) – processos que têm lugar sobretudo neste binómio de tempo.
Já então, ainda que de forma algo incipiente, a diversidade das nações do Velho Continente indiciava uma unidade, que, de forma absolutamente “informal”, transcendia a individualidade de cada uma das partes. A tese de Patrick Geary em relação a uma pseudo-história é aqui pertinente: “Esta pseudo-história começa por partir do princípio de que os povos europeus são unidades sociais e culturais distintas, estáveis e objetivamente identificáveis, e de que se distinguem uns dos outros pela língua, pela religião, pelos costumes e pelo carácter nacional, características estas que são inequívocas e imutáveis. Supostamente, terão sido formados num momento remoto da pré-história ou então o processo de formação étnica aconteceu nalgum momento da Idade Média, tendo terminado, no entanto, para sempre.” Com efeito, e apesar das múltiplas convulsões que os marcaram, os séculos XV e XVI constituem um período de tempo com uma extraordinária coerência própria, expressa precisamente na já referida continuidade dos fenómenos que então tiveram lugar, nomeadamente o facto de o continente ter recebido um quadro de referências civilizacionais, ideológicas e, consequentemente, identitárias (por exemplo, ao nível cartográfico e técnico, de que o nascimento da imprensa é paradigmático), que o tornou claramente distinto dos que com ele coexistiam. E, nas diversas fases deste processo, é indiscutível a relevância do contributo português.
O percurso da Europa per se, bem como ao nível da relação que foi estabelecendo ao longo dos séculos com as unidades que a compõe, constitui um processo transformador modelar em relação àquela mutação de que Braudel fala quando evoca a história de “amplitude secular” e as “grandes permanências”, ou seja, a “história de longa, e mesmo de muito longa, duração”. Dito de outro modo, o que está aqui em questão não é uma transformação momentânea e, por isso, superficial – relacionada com o tempo breve, do acontecimento, do indivíduo, isto é, a história de curta duração (événementielle). Também não se trata da história de média amplitude, conjuntural, “do ciclo e até do ‘interciclo’ – que oferece à nossa escolha uma dezena de anos, um quarto de século e, em última instância, o meio século do ciclo clássico de Kondratieff”. Trata-se antes de uma mutação ontológica, de movimentos profundos, que revolve os alicerces do quadro mental e, consequentemente, das estruturas do imaginário que, assim, se vê irremediavelmente alterado. Daí ser inútil utilizar balizas cronológicas e periodizações estanques, pois foi no entretanto (bastante flexível) dos duzentos anos aqui em causa que esse processo transformador ganhou novos contornos de uma forma mais clara e objetiva em relação ao passado.
Se bem que, nos últimos anos, se tenha vindo a aprofundar, sob o ponto de vista documental e historiográfico, o conhecimento das relações entre Portugal e a restante Europa, a verdade é que muito há ainda a fazer no sentido de compreender o carácter e a configuração das concepções e representações portuguesas do continente europeu nos séculos de Quatrocentos e Quinhentos, assim como de identificar e apreender os mecanismos de reconhecimento das realidades do Velho Continente nos círculos cultos do reino português.
Estes são os objetivos centrais de um conjunto multidisciplinar de estudos, que se propõem aprofundar os diversos intercâmbios desenvolvidos entre Portugal e os diferentes espaços europeus nos séculos XV e XVI. A circulação cultural, os contatos político-diplomáticos, militares e estratégicos, bem como as relações de índole religiosa, comercial e mercantil estarão no centro de uma reflexão que se deseja crítica e ampla.
De alguma forma todos os textos aqui presentes cruzam-se e inclusivamente tocam-se em diversas problemáticas, ou não tivessem por pano de fundo o mesmo enquadramento temático: Portugal e a Europa nos séculos XV e XVI. Olhares, relações, identidade(s). As mais diversas áreas de atuação humana que marcaram o quotidiano português e europeu nos séculos XV e XVI estão de alguma maneira representadas nesta antologia.
Fruto do apoio conjugado de duas unidades de investigação sediadas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (o Instituto de Estudos Medievais e o CHAM – Centro de Humanidades), a presente antologia é, pois, composta por quatro partes principais – Alteridades e construções identitárias; Intercâmbios e interculturalidade; Olhares e representações; Fronteiras e europeização –, as quais, no seu conjunto, pretendem responder às questões e aos objetivos em cima apontados. Como se pode inferir, a História cultural e das mentalidades é predominante, sem que isso signifique contudo o apagamento de outros campos, como por exemplo o económico e mercantil. De reter é o quadro conceptual que serve de base à totalidade dos estudos apresentados: paisagem, fronteira, centro/periferia, representação, identidade, alteridade, interculturalidade, comunidade, imaginário, espiritualidade e emoção.
Paulo Catarino Lopes. "Introdução: Portugal e a Europa nos séculos XV e XVI. Duas centúrias de contatos, continuidades e também redefinição", in
Portugal e a Europa nos séc. XV e XVI. Lisboa: IEAM - Instituto de Estudos Medievais, 2019.