terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

As máscaras



Crónica de Guta Moura Guedes








O Carnaval não é algo que facilmente se explique. Entranha-se no corpo e na cabeça e nunca mais sai
N
asci e cresci na província, já o escrevi aqui. Agora vivo em Lisboa, mas tenho aquilo a que nós, os que nascemos fora das grandes cidades, chamamos “terra”. A minha terra é Torres Vedras, cidade velha, com muita história, muito campo, muito verde. Diferente de todas as outras, pois todas são diferentes entre si. Mas esta tem algo de muito especial: Carnaval. Comprovadamente — ao que parece — o mais antigo de Portugal. Enraizado na nossa cultura e com uma dimensão irónica e uma liberdade crítica como poucos têm.


Ora, isto do Carnaval não é algo que facilmente se explique. Suponho que quase entre no sangue quando se respira o ar pela primeira vez e se vive a infância num sítio que tem Carnaval. Entranha-se no corpo e na cabeça e nunca mais sai. O porquê escapa-se-me. Aqui e ali acredito que será porque permite que sejamos outros que não nós durante quatro ininterruptos dias (e noites). Essa ideia da máscara, do artefacto que ao ser usado nos transforma, existe em muitos outros contextos que não o do Carnaval especificamente. Muitos dos rituais, religiosos ou não, são efectuados usando máscaras e vestimentas específicas, com o objectivo de conferir a quem os usa mais poder e mais impacto. Antropológica e socialmente a ideia de disfarce, de transformação, de troca de identidade é atraente, conhecida e foi usada ao longo de milénios. Tem, isso é seguro, no Carnaval um dos seus expoentes máximos.
A concepção da máscara é um acto de design. O desenho em si dos objectos vários que compõem uma personagem passa concretamente por todas as fases do design de produto ou de vestuário. Mas é um acto de design também pela parte de quem passa a ser outro. A criação da identidade e personalidade de um personagem que se veste durante uns dias ou umas horas é um exemplo de desenho. Que todos nós, os que nos mascaramos, fazemos. Delineamos um estereótipo, montamos a sua forma de agir e o seu discurso, e depois, literalmente, vestimos uma das suas possíveis imagens. E sai-se para a rua, porque nada disto funciona sem público e sem interacção ou sem música e celebração.
Essa é a possibilidade que uma máscara dá.
Quem não gostaria de experimentar ser outro durante algum tempo?

Guta Moura Guedes, E-Revista Expresso, 22 de fevereiro de 2020
Guta Moura Guedes escreve de acordo com a antiga ortografia

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