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É uma bela tradição da nossa República, esta de convidar um cidadão a tomar a palavra neste contexto solene para assim representar a comunidade de concidadãos que somos. É nessa condição, como mais um entre os dez milhões de portugueses, que hoje me dirijo às mulheres e aos homens do meu país, àquelas e àqueles que dia a dia o constroem, suscitam, amam e sonham, que dia a dia encarnam Portugal onde quer que Portugal seja: no território continental ou nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, no espaço físico nacional ou nas extensas redes da nossa diáspora¹. Se interrogássemos cada um, provavelmente responderia que está apenas a cuidar da sua parte – a tratar do seu trabalho, da sua família; a cultivar as suas relações ou o seu território de vizinhança –, mas é importante que se recorde de que, cuidando das múltiplas partes, estamos juntos a edificar o todo. Cada português é uma expressão de Portugal e é chamado a sentir-se responsável por ele. Pois quando arquitetamos uma casa não podemos esquecer que, nesse momento, estamos também a construir a cidade. E quando pomos no mar a nossa embarcação não somos apenas responsáveis por ela, mas pelo inteiro oceano. Ou quando queremos interpretar a árvore não podemos esquecer que ela não viveria sem as raízes.
Pensemos no contributo de Camões. Camões não nos deu só o poema. Se quisermos ser precisos, Camões deixou-nos em herança a poesia. Se, à distância destes quase quinhentos anos, continuamos a evocar coletivamente o seu nome, não é apenas porque nos ofereceu, em concreto, o mais extraordinário mapa mental do Portugal do seu tempo, mas também porque iniciou um inteiro povo nessa inultrapassável ciência de navegação interior que é a poesia. A poesia é um guia náutico perpétuo; é um tratado de marinhagem para a experiência oceânica que fazemos da vida; é uma cosmografia da alma. Isso explica, por exemplo, que Os Lusíadas sejam, ao mesmo tempo, um livro que nos leva por mar até à Índia, mas nos conduz por terra ainda mais longe: conduz-nos a nós próprios; conduz-nos, com uma lucidez veemente, a representações que nos definem como indivíduos e como nação; faz-nos aportar – e esse é o prodígio da grande literatura – àquela consciência última de nós mesmos, ao quinhão daquelas perguntas fundamentais de cujo confronto um ser humano sobre a terra não se pode isentar.
Se é verdade, como escreveu Wittgenstein, que «os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo», Camões desconfinou Portugal. A quem tivesse dúvidas sobre o papel central da cultura, das artes ou do pensamento na construção de um país, bastaria recordar isso. Camões desconfinou Portugal no século XVI e continua a ser para a nossa época um preclaro² mestre da arte do desconfinamento. Porque desconfinar não é simplesmente ocupar de novo o espaço comunitário, mas é poder, sim, habitá-lo plenamente; poder modelá-lo de forma criativa, com forças e intensidades novas, como um exercício deliberado e comprometido de cidadania. Desconfinar é sentir-se protagonista e participante de um projeto mais amplo e em construção, que a todos diz respeito. É não se conformar com os limites da linguagem, das ideias, dos modelos e do próprio tempo. Numa estação de tetos baixos, Camões é uma inspiração para ousar sonhos grandes.
José Tolentino Mendonça, O Que É Amar Um País, Lisboa, Quetzal, pp. 10-13.
[excerto do discurso «O que é amar um País», proferido por D. José Tolentino Mendonça no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em 10 de junho de 2020]
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