Tiramos tudo o que temos das palavras, e a seguir as palavras tiram-nos tudo de volta
Há um nexo entre falar e falhar igual ou quase igual ao nexo entre felicidade e expectativa. O fracasso, que leva à desvalorização, conduz-nos ao auto-exame moral, quando devia instigar o exame verbal. Mais do que os actos, tratemos de acusar as nossas palavras, fórmulas, profecias, aforismos, precipitações, entusiasmos, desesperos, ilusões. É que não há nada de errado em falhar: conhecemos bem as insuficiências, os defeitos, as faltas de esforço ou virtude. Mas das palavras temos a máxima culpa. Dizemos o que queremos dizer, mesmo que não o queiramos, ninguém nos obriga.
Sobre o modo como as palavras nos defraudam, abandonam, se desligam por completo da vida que vivemos, ao ponto de não podermos acreditar em palavra nenhuma, o austríaco Hugo von Hofmannsthal escreveu o ensaio ficcionado “A Carta de Lorde Chandos” (1902), obra maior sobre o curto-circuito entre as palavras e os actos e o significado. Já escrevi sobre esse texto noutra ocasião, mas agora descobri uma breve correspondência do jovem Hofmannsthal com um amigo, Edgar Kart, nos anos 1892 a 1895. Recorro à edição brasileira, na tradução de Flávio Quintale: “Não poderemos contar as coisas importantes que vivermos, pois não nos lembraremos delas. Creio, contudo, que de vez em quando poderemos pôr no papel algum fragmento de uma sensação subjetiva, de um estado de humor, e disso poderá surgir uma troca de correspondências, como se fazia no século passado, quando as pessoas escreviam com mais graça, mais elegância e com mais nobreza do que agora (...)”. Gosto deste cepticismo activo, do uso de “correspondências” em sentido tão poético quanto postal, e até da mitificação do “século passado” (no século passado eu vivia com a cabeça no “século passado”, ou seja, o XIX; o que farei agora?). Uma das razões pelas quais o jovem Hugo defende a necessidade da correspondência, da conversa, da literatura, é “a necessidade de embelezar e de interpretar poeticamente aquilo que é comum e pálido”, ainda que tanto “embelezar” como “interpretar” sejam duas conhecidas armadilhas.

Hugo von Hofmannsthal (1874-1929)
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Hofmannsthal, mesmo novo, já sabe muito. Sabe que fazemos “testamentos”, quando só estão ao nosso alcance “fragmentos”; sabe que queremos uma vida “bela” e “autêntica”, mesmo quando a vida torna inconciliável a autenticidade e a beleza; sabe que não beneficiamos de uma experiência coesa mas de “experiências” desgarradas e sem sageza; sabe que toda a literatura, e até a Bíblia, não trata apenas da verdade mas da “imaginação” e do “símbolo”; sabe que “o mundo inteiro é a comunicação de coisas incompreensíveis à nossa alma ou a comunicação da alma com ela mesma”; sabe que “tristeza” é uma palavra que traz consigo uma ideia, mas que existem “milhares de tristezas”.
Escreve Hugo ao amigo: “Vês, não falo como muitas pessoas inteligentes e originais; basta ir até minhas prateleiras para encontrar livros profundos, fascinantes e envolventes, a tal ponto de me perder neles até que os pensamentos e as sensações humanas e livrescas cheguem a anular meus pensamentos e sensações e se coloquem no lugar deles.” A aversão à citação deve ser combatida: não está já quase tudo dito, e dito com maior perfeição, de modo que nos cabe pouco mais do que uma arte combinatória do que foi dito antes do nosso tempo ou no nosso tempo?
“Na verdade”, acrescenta a mesma carta, “não somos nós que possuímos e mantemos os homens e as coisas, mas são elas que nos possuem e nos mantêm. Desse modo parecemos não ser vazios, mas algo ainda mais inquietante, como um fantasma em plena luz do dia: pensamentos estranhos que pensam dentro de ti, velhos estados de alma, mortos e artificiais, e vês as coisas através de um véu, te sentes estranho e excluído da vida, nada te consola, nada te preenche por completo”. Tiramos tudo o que temos das palavras, e a seguir as palavras tiram-nos tudo de volta: “As palavras não são deste mundo, são de um mundo em si mesmo, um mundo completamente independente, como o mundo dos sons.” Mas quando já se esvaiu a inconsciência, a inconsistência e a inconstância dos jovens, diz Hofmannsthal, “devemos agora colocar o sentimento a serviço de quem e do que vive e existe connosco”.
Pedro Mexia. Revista E, Semanário Expresso, 4 de abril de 2025