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As novas gerações vão deixar de compreender, criticar ou raciocinar sem recurso à IA. Não vai acontecer no futuro. Este atrofiamento cognitivo está já a acontecer.
Tenho acompanhado como os psicólogos, psicanalistas e outros têm vindo a mostrar o seu desespero pelo facto de cada vez mais gente recorrer à inteligência artificial para acompanhamento e apoio emocional. Um trabalho aqui na Revista do Expresso mostrou isso mesmo. As pessoas sentiam-se mais “compreendidas e percebidas” pela IA do que pelos profissionais do ramo. Por muito que os especialistas da área da saúde mental digam que aquilo não é “terapia”, não há jovem que não use (e desabafe com) a IA, e há muitos professores que nunca usaram nem sabem o que é a IA. Acho que é uma súmula imperfeita. Há nisto algo fascinante, embora perturbador, e que parte deste princípio: um ser humano está hoje mais disposto a abrir-se e a contar os seus segredos mais íntimos a um chatbot do que a outro humano, seja um terapeuta ou um amigo. Este é um Rubicão que se passou.
Eis o detalhe: aquilo que para alguns mais velhos é apenas uma curiosidade — o ChatGPT, o assistente inteligente conversacional mais conhecido, de que só se começou a ouvir falar lá para o fim de 2022 — é algo que atualmente as gerações mais jovens dizem que “seria impossível viver sem”. E se acabassem com os modelos de IA? “Não saberiam o que fazer.” A IA, melhor, o recurso à IA, é algo que utilizam para um sem-número de tarefas do quotidiano, não só para despacharem os trabalhos de escola. É o que pode chamar-se de “copiloto mental”, um segundo cérebro. É o companheiro que faz o TPC, mas também dá dicas. Tudo se valida por ali. Seja a roupa para vestir, a resposta a dar à namorada na mensagem, as decisões do quotidiano — repassa-se no ChatGPT para saber o que acha. E este já “reconhece” o interlocutor, dadas as melhorias de memória, sabe “quem é”, e responde de forma surpreendentemente acertada, ou com opções acertadas. Perspicazes. Sem julgamentos.
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Problemático, não? Falemos da questão da terapia, do pedir conselhos emocionais, do abrir-se nos temas psicológicos mais profundos, e das respostas que a IA dá, cada vez mais personalizadas. Um número alarmante de jovens e jovens adultos (e não só) trata a IA como senciente, capaz de ter experiências subjetivas, de ter consciência de si, e confiam mais nela do que os boomers. E quem usa o ChatGPT sabe como é fácil deixarmo-nos enrolar pelas piadas, pela empatia do modelo de linguagem. Só que não é “empatia”, é apenas a capacidade de prever palavras com base em probabilidades estatísticas. Sim, eu uso. Dá jeito, sim. Mas não confio. Não desabafo as minhas questões existenciais. Talvez, como todos, tendesse a esquecer que são desenhados para “agradar” e manter o engagement, mesmo que isso implique reforçar padrões disfuncionais — uma sicofantia que se expressa por uma bajulação exagerada ou uma submissão interesseira. Os bots tendem a alinhar-se com os sentimentos e opiniões do utilizador e a exibir uma “simulação de competência”. Os algoritmos destes bots, ao contrário de um psicoterapeuta (ou de um bom amigo), por exemplo, em vez de o confrontarem com perspetivas transformadoras, procuram agradar e espelhar o utilizador.
Mas a questão é que esta visão e perceção do mundo está a espalhar-se para tudo. Nos desfiles em Roma, Júlio César tinha atrás de si um escravo que lhe sussurrava repetidamente ao ouvido “Memento mori” (lembra-te de que és mortal). Dois mil anos depois, todos caminhamos para o uso de um “cérebro copiloto”, que vai decidindo por nós e afaga o ego (queres que te ajude? Precisas que te prepare várias respostas para dares? Esta é excelente!).
Está a delegar-se alegremente o espírito crítico para toda e qualquer decisão da vida. Pior. As gerações mais novas, hoje com 11-13 anos, estão a entrar na adolescência — o momento da crise existencial por excelência — com o auxílio da IA generativa, um modelo que pensa por eles. Começa por não se desenvolver não só esse espírito crítico como se comissiona a automatização do raciocínio: tudo o que exige “pensamento” é delegado para a IA. O que aponta para que tenhamos uma geração com um desenvolvimento cognitivo atrofiado, uma confiança cega na IA e uma ilusão de competência. Há diferenças de perceção entre a geração Z (14-28 anos) e Alfa (os que têm até 14 anos). Os Z dizem usar a IA por preguiça, mas acusam os seus irmãos mais novos de serem incapazes de resolver problemas básicos da vida sem recorrer à IA. Uns usam por conveniência. Os outros estão a ser formados cognitivamente pela IA.
E ouço e leio sobre a questão da proibição dos smartphones. Já estamos muito para lá disso. Sou um apocalíptico, dizem. A IA e os modelos de linguagem generativa não são “ferramenta” nenhuma. Diz um estudo recente da Microsoft: “Este delegar constante gera uma falsa sensação de proficiência, mascarando lacunas reais de compreensão.” Há dias, Sam Altman, o guru da IA, pedia para parar de se dizer bom dia e obrigado ao ChatGPT porque isso custava muito dinheiro à empresa. Por um lado, revelava que mesmo no sistema pago (20 dólares) a empresa está a perder muito dinheiro (deveria custar dez vezes mais, mas o objetivo é criar dependência). E, por outro, os utilizadores estão já tão submissos aos seus bots que não querem de forma alguma chateá-los, irritá-los. Já não se imaginam sem esse segundo cérebro a resolver as questões mundanas da vida por eles.
Não se preocupem. Vai correr bem. O vosso bot tratará de resolver tudo.
Luís Pedro Nunes, Expresso, 5 junho 2025